Da técnica ao vazio da indiferença

O sonho do homem é a técnica e foi sempre ela, enquanto reflexo do domínio da natureza. Era nele que Nietzsche via esse «animal inacabado», completando-se pela racionalidade e pelo consequente domínio científico e da técnica. Hoje, que lugar ocupa ela na nossa sociedade e na nossa cultura? Terá contribuído para essa ideia de progresso, tão perseguida ao longo da história?

Mais do que estar ao serviço da própria ciência, a técnica sempre foi vassala do poder político e da guerra. A prova mais recente disso é, não só os grandes avanços que permitiram as guerras do princípio do século XX, de uma capacidade destrutiva cada vez mais surpreendente e mais inédita, como igualmente a forma como ela abriu o caminho para os grandes avanços das guerras do final do século, em particular a invasão do Iraque, com a sua precisão cirúrgica e letal, comandada à distância de um botão.

Há toda uma panóplia de novas possibilidades científicas, orientadas para estas actividades. Todavia, estas descobertas, impulsionadas pela indústria macabra da guerra, aplicam-se também noutras áreas do saber. A internet, por exemplo, se foi um desses instrumentos poderosos ao serviço da indústria militar e da «cirúrgica» guerra, está hoje ao alcance da maioria da população. Estar ao alcance não significa, todavia, que se encontra disponível para todos, mas a tendência para a sua globalização. Rapidamente, a apropriação da internet pelas grandes empresas multinacionais se tornou um negócio rentável, por várias (e não as melhores) razões.

Desde os escândalos de espionagem que conhecemos até às manobras de sabotagem e de hackers, percebemos o quão perigosa pode ser a sua utilização nas mãos erradas. A Cambridge Analytics foi recentemente acusada de utilizar indevidamente os dados dos utilizadores das redes sociais e Zuckerberg está há vários dias a justificar-se diante do parlamento. E nós, os incautos reféns deste imbróglio, violados na privacidade e expostos, já não temos ilusões a este respeito.

O Facebook, sobretudo, tem sido uma arma maciça e perigosa e terá sido provavelmente utilizada para condicionar a nossa visão política (e o nosso voto nos líderes políticos). Transformou-se num monstro que, além de controlar os nossos dados, tem uma dimensão ainda mais nefasta: a de controlar a nossa mente e a forma como pensamos.

Neste sentido, e lembrando Adorno a propósito da ideia da massificação e da consequente alienação, que ocorre nos meios de comunicação, na televisão, etc., podemos aferir do seu imenso poder de manipular as massas, hoje muito mais devastador. Um poder acolhido com alegria. Se, a princípio, víamos com bons olhos a oportunidade de partilharmos a nossa opinião com mais liberdade, cedo compreendemos que não fazemos senão repetir o eco, notícias a que temos acesso por algoritmos criados por nós próprios, com os nossos «likes» e emoticons, repetindo as fake news, incapazes de nos distanciarmos criticamente dessa algazarra que diariamente nos bombardeia.

E, no meio desta confusão, nesta nossa distracção permanente, no abandono da leitura e da verdadeira crítica e dos fóruns, os quais se desenvolviam antes nos jornais e nos meios de comunicação, a pergunta surge: afinal quem lucra com isto?

No mergulho apaixonado pelas idiossincracias de Bruno de Carvalho, na exaltação dos ângulos dos golos de Ronaldo, os nossos jornais e televisões reproduzem “ad nauseam” a mesma frivolidade, infantilizando o espectador, deixando-nos a braços com as não-notícias, os não-acontecimentos, o esvaziamento do acontecimento por excelência.

Poucos são os que, dando conta desta histérica e distópica Disneylândia, se posicionam criticamente e são capazes de dizer «Basta!». Não se compreende aonde nos leva tanta telenovela de mau-gosto, que não seja ao sórdido gosto de espreitar pela fechadura, tão capitalizado pelos meios de comunicação.

A parábola dos cegos (Pormenor)

No meio de tanta distracção e de tanto atabalhoamento, temos ainda a tecnologia, essa vã ilusão de podermos aceder a tudo, à distância de um clique. A questão é se estaremos (e como estaremos) capazes para formar autonomamente o pensamento? É bom observar o discurso emotivo privilegiado nas redes sociais.

Alguém lança uma notícia e/ou uma observação e imediatamente um séquito aparece, com os seus likes e emoticons, predominando a lógica da paixão e não o debate, privilegiando o sentimento e não a argumentação ou a retórica. Um discurso infantilizado, incapaz de se justificar e pouco sustentado. Um dia destes, uma jornalista conhecida da nossa praça dizia-me que, a seguir à sua crónica semanal, se «abria o esgoto».

Esta «fúria» das redes sociais não é senão um sintoma da nossa incapacidade de rebater argumentos e de discutir com seriedade, em suma, com maturidade. Eco falava das redes sociais como o instrumento que dava «voz aos idiotas». Tal ocorre porque recorrer ao insulto e ao ataque pessoal será sempre um modo mais fácil de reduzir o adversário, mostrando a inépcia da discussão no espaço virtual. E revela um mal maior: o adormecimento da nossa capacidade crítica, ainda que de modo paradoxal, no sentido de aparentemente ela existir, mas não passar de uma camada superficial e esvaziada. Em suma, infantilização, por um lado, e perda de sentido crítico por outro. E isso revela-se na forma como as «discussões» surgem fortemente polarizadas, sem quaisquer nuances ou subtilezas.

No avesso do discurso acintoso e enraivecido, ou apaixonado, a indiferença, o cansaço, a recusa da leitura e de pensar. Em suma, a alienação ou o estado de zombie, como preferirem chamar-lhe. O pensamento aparece já dado e já feito, oferecendo-nos uma visão. Tal facto é transversal a tudo o que nos envolve, desde os grandes problemas a escala global até à cor do pelo do guaxinim, pois a omnipresença dos comentadores é gritante. Não seria hoje possível apresentar um telejornal como era apresentado há 10 ou 15 anos. Tudo é profusamente comentado, para que o ouvinte saia exaustivamente informado, sem espaço para criar o seu próprio pensamento. No entanto, sabe-se, raramente o comentador é imparcial e todo o comentário já vem eivado de uma ganga absorvida pelo ouvinte, sem distância crítica. O que o acto da leitura continha de protecção, por causa da lentidão da percepção, perdeu-se hoje no ouvido e no visto, no que nos entra pelos olhos e pelas casas adentro. E a contradição está à vista: nunca se viu tanta informação disponível e tão pouca gente verdadeiramente informada e, por outro lado, que seja capaz de formar a sua própria opinião.

Por isso, eis aqui a explicação de chegarmos onde chegámos hoje, quando as guerras nos batem à porta (mas ainda não nos entraram pela casa adentro), nos entram pelos olhos e matam gente que antes não morria, como os negros migrantes, os muçulmanos, ou ainda grupos e minorias que coexistiam pacificamente. Não achamos que isso seja senão um fenómeno ou episódico, mesmo quando é demasiado recorrente para ser episódico. Até já nos habituámos aos atentados terroristas e perdemo-nos na confusão de informação entre a sua justificação, na sua banalidade. «Ah, mais um!», é o que pensamos, mas não dizemos, para não sermos politicamente incorrectos. Já sem falar das caixas de comentários de jornais, antigamente impensáveis no tom insultuoso a que assistimos hoje.

Achamos mais ou menos «normal» (e seria interessante questionar aqui a noção de «normal») a existência de milícias assassinas nas ruas da Europa como os génération identitaire, ou grupos de extrema-direita, ou neo-nazis, florescendo por essa velho continente antes tão seguro, legitimados agora por partidos populistas e nacionalistas, apelando à expulsão dos «demasiados» refugiados e migrantes que penetraram as nossas fronteiras. Achamos normal a existência de campos de «refugiados» na Hungria porque temos de conter essas massas ou «hordas» que chegam às portas da Europa diariamente.

 

Ninguém reparou ainda nas macabras semelhanças entre os campos de concentração e os de refugiados?

 

Ninguém viu como é estranha esta nossa apatia face à iminência de uma guerra devastadora, envolvendo vários países da Europa?

No modo como Trump incendeia os ânimos para os ataques à Síria, juntamente com os Aliados? Desafiando todo o bom senso e reavivando os conflitos com a Rússia? Parámos para pensar nas consequências dessa guerra? Demo-nos ao trabalho de estabelecer paralelos entre a invasão do Iraque e, agora, a pretensa invasão da Síria?

Há também um argumento que «justifica» esta indiferença: o de ser «muito longe». Assim como é muito longe o que acontece no Brasil. O longínquo não nos comove, como o que acontece ao nosso lado. Seria um bom argumento se isso não trouxesse consequências como uma tempestade longínqua trazendo os destroços para perto. A democracia, na América Latina, está a saque e os EUA tiram disso dividendos. Está muito longe, sim. Mas o esvaziamento de recursos da América Latina trará de novo a miséria e uma vaga de migrantes semelhante, ou pior, do que a da década passada. Com uma diferença essencial. Economicamente, a Europa não tem o mesmo para oferecer, está exaurida.

Deveríamos estar minimamente atentos, para observarmos que a estabilidade dos países longínquos beneficiaria a nossa própria estabilidade. Se a vaga de imigrantes brasileiros estancou em Portugal, isso deveu-se à recuperação económica do Brasil, a um ponto tal que o fluxo migratório inverteu a sua direcção, fugindo muitos portugueses da crise económica. Não há hoje um movimento que não tenha implicações à escala global, pois a globalização veio para ficar e transformou-se numa teia gigantesca, onde o capitalismo é a aranha, também ela gigante, monstruosa. Não ver isto é cegueira, estaremos como o cortejo de Brueghel, caminhando todos para o abismo. A indiferença é, na minha opinião, essa caminhada para a catástrofe e precisamos de despertar, para interromper a sucessão de pequenas catástrofes nela alojadas, até ao apocalipse final.

Vários amigos brasileiros disseram-me que o pior inimigo do activismo, e da luta contra os recentes acontecimentos no Brasil, é essa indiferença causada por um activismo aparente: o das redes sociais. Quem se senta à frente do computador isenta-se de sair à rua, de se manifestar e de contestar, o que no Brasil tem sido um gravíssimo problema. Os últimos acontecimentos, por exemplo, mobilizaram rapidamente muita gente, mas, com o passar do tempo, esmoreceram rapidamente, enquanto o Facebook se enchia de slogans, imagens e discussões políticas. A indiferença política e social tem aqui o seu oxímoro (e reverso) terrível. Travestida de activismo, a actividade das redes sociais é inoperante e inútil, tal como será inútil não nos manifestarmos diante das embaixadas e das instituições de direitos humanos, face à crise gravíssima do Médio Oriente e, em particular, da Síria.

Se queremos salvar a Europa, temos de exigir que os ataques parem e não deixar repetir os erros históricos cometidos no Iraque, nas duas invasões de tão má memória, onde o armamento maciço como razão invocada foi a maior impostura da história das guerras.

Não há outra forma nem podemos contar com essa tecnologia que esvazia a capacidade de pensar e de agir, de interromper a catástrofe. Já Walter Benjamin compreendera o facto de que a tecnologia sem experiência era cega e vazia. Transforma-nos em autómatos, alienados e zombies, unicamente capazes de repetir gestos como máquinas enlouquecidas e profundamente traumatizadas pela experiência do choque. Serão a nossa indiferença e a nossa apatia a irremediável consequência dessa experiência?

 

Texto publicado no Jornal Imperativo.

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