“Não vou mandar limpá-lo”, decidiu.
Decidiu o homem da mercearia
que deixara amarrotar o rosto pelas vielas
enquanto descia a calçada
e os olhos, manchados de sonhos antigos,
resvalavam para dentro.
Um pássaro morrera, empurrado pelo vento
e eram tantos, tantos
os rostos que atravessavam o silêncio das ruas
as mulheres usavam-nos
como vestidos modernos
e descartáveis
os homens usavam-nos
como camisas que se mudam,
mas ele decidira
“não vou mandar limpá-lo”
e as mulheres desviavam o rosto
porque elas só sabiam olhar
para camisas novas e limpas.
Rua abaixo, o rosto de olhos voltados para dentro
a recusa como uma bomba
a rebentar-lhe no coração
o pássaro morto rolava com o vento
e os os rostos desfilavam
indiferentes à morte do pássaro
à queda das folhas e ao fim do Verão.
O homem decidira
“nunca mais vou sequer mudá-lo!”
enquanto os pés o empurravam para a frente
e os olhos sujos de vida
estremeciam de ternura
ao olhar o pássaro morto
que era empurrado pelo vento
sem que as máscaras o vissem.
Trazia nos pulsos essa dor
o reconhecimento, sabendo que a vida
está do outro lado do vidro
no lugar de nenhum rosto.
MJC
olga fonseca
Amei,querida MJ!
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Maria João Cantinho
Obrigada, querida Olga! Um beijinho.
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