Antes de falarmos de Fernando Pessoa, reservemos algumas palavras para falar dos ruba’iyat de Omar Khayam, que estão na base dos Ruba’yiat de Fernando Pessoa. Omar Khayam foi um grande poeta persa, que nasceu em 1048 e morreu em 1131 (embora haja alguns documentos que remetam para outras datas).
Poeta, filósofo, astrónomo e matemático, Omar Khayam teve também, durante a sua vida, uma popularidade literária que obscureceu o seu lado de cientista. Mas é através da sua poesia que descortinamos o seu pensamento e a sua atitude perante a vida. Porém, a sua celebridade ao nível mundial viria apenas em 1839, com a tradução do inglês Edward Fitzgerald, que traduziu os seus Ruba’iyat para inglês. A palavra Ruba’iyat significa quadras, em que o poeta revela a sua visão do mundo, um tanto pessimista em relação ao porvir, pouco compatível com o cientista Omar Khayam. Após a tradução inglesa dos Ruba’iyat, a obra de Khayam tornou-se conhecida e também foi posteriormente vertida para a língua francesa. O tradutor francês, J. Nicolas, viu na poesia de Khayam uma forma de representação simbólica da filosofia sufi e mística.
Omar Khayam era um epicurista fino e amante dos prazeres sensoriais. Esse seu lado era visto com desconfiança, pois era contrário aos costumes dos bons muçulmanos. Idêntica atitude, porém, podemos ver nos príncipes das taifas e sobretudo no grande poeta que foi Al-Mut’amid, na Andalusia. A celebração do vinho e dos prazeres físicos, como forma de libertação do peso da vida e canto da efemeridade, era um modo de libertação da dor e de alcançar a felicidade. Os 600 ruba’iyat que Fitzgerald verteu para a língua inglesa apaixonaram os poetas do século XIX, que viam no exótico e no misticismo persa, como também aconteceu com o poeta persa Rumi, uma poderosa fonte de espiritualidade e de inspiração poética. Também Fernando Pessoa sucumbiu ao encanto (e profundidade) da poesia de Khayam, que transportou para a sua própria poesia por duas vias: pela tradução de alguns ruba’iyat de Khayam através da tradução inglesa de Fitzgerald, mas integrando ainda na sua própria obra poética, facto que foi tardiamente conhecido, havendo a publicação de alguns ruba’iyat. No seu texto As Crónicas Decorativas de Fernando Pessoa[1], Fabrizio Boscaglia refere a imensa importância do legado de Khayam no próprio pensamento de Pessoa, quer na poesia, quer na prosa, sobretudo entre 1926 e 1935. Fabrizio Boscaglia cita particularmente a crónica sobre a Pérsia, onde podemos identificar o interesse de Pessoa no pensamento e espiritualidade persas.
Tanto Alexandrino Severino como Maria Aliete Galhós, Márcia Feitosa e Boscaglia defendem a ideia que a poesia de Khayam (mais do que o seu pensamento filosófico) deixaram marcas na obra de Pessoa, que escreveu nada menos que 172 rubaiyat e traduziu cerca de 42 (a partir de Fitzgerald), em homenagem a Khayam. Patrick Quillier, poeta e tradutor de Pessoa em França, também defendeu esta tese. Omar Khayam, como outros poetas e pensadores do mundo islâmico fizeram parte das suas leituras desde jovem, mas só a partir de 1926 (data da tradução de Fitzgerald), teve acesso à sua poesia. É o exemplar mais anotado na sua biblioteca, o que revela o seu interesse apaixonado. Em 1926, Fernando Pessoa publicou três dos seus Ruba’iyat na revista Contemporânea. Os restantes Ruba’iyat foram coligidos e publicados por Maria Aliete Galhoz, na edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 2008. Este livro é o resultado de um trabalho continuado pela autora, que apresentou os primeiros resultados dessa pesquisa em 1985, num congresso internacional de Estudos Pessoanos intitulado «Canções de Beber na obra de Fernando Pessoa: rubai e ruba’iyat presentes na poesia ortónima».
Inclusive, de acordo com Jerónimo Pizarro, um dos grandes comentadores de Pessoa, a sua «experiência» com Omar Khayam é uma experiência de despersonalização, criando uma persona que encarna o seu pensamento e a sua poesia. Os elementos dos Ruba’iyat de Omar Khayam foram tão importantes para ele que Pessoa planeava escrever um ensaio sobre o autor persa, mas esse projecto nunca foi concluído.
Para Fabrizio Boscaglia, o pensamento de Khayam foi visto por Pessoa como uma mistura de pessimismo, nihilismo, epicurismo, fatalismo, tedium e agnosticismo («Fernando Pessoa and Islam», p. 55), o que ele chamou de «caótico ideal. Paralelamente a esta leitura de Khayam, também Fernando Pessoa leu pensadores do misticismo persa, no qual se incluem nomes como Hafiz e Rumi. E estas leituras dos poetas e pensadores sufis ampliaram o significado dos seus próprios Ruba’iyat, nos quais se reconhece o eco do sufismo. Todavia, como refere Boscaglia (p. 75), o fatalismo e o pessimismo, vistos por Pessoa em Omar Khayam, estão mais perto da interpretação de Edward Fitzgerald do que do próprio pensamento do autor persa.
Num precioso livrinho de Jean-Luc Nancy, «L’Ivresse», o filósofo fala da embriaguez — e aqui falo da embriaguez que o vinho provoca (um dos elementos mais referidos nestas Rubaiyat) — como uma das condições do espírito poético, dizendo: «A embriaguez é ela mesma a absolutização, o desencadeamento, a ascensão livre para fora do mundo»[2]. O vinho, tanto em Khayam como em Pessoa, «funciona como possibilidade de fuga do mundo real não compreendido», segundo as palavras de Márcia Feitosa[3]. A embriaguez, do ponto de vista de Nancy, é a condição que a poesia permite, da sublimação do real. Vejamos dois dos Ruba’iyat de Fernando Pessoa:
Dormimos o universo. A extensa massa
Da confusão das cousas nos enlaça,
Sonhos; e a ébria confluência humana
Vazia, echoa-se de raça em raça.
Ao goso segue a dôr, e o goso a esta.
Ora o vinho bebemos porque é festa,
Ora o vinho bebemos porque há dôr.
Mas de um e de outro vinho nada resta.
O sujeito lírico fala aqui de uma experiência dupla relativamente ao vinho: como festa e como esquecimento e, para ele, o mundo interior é representado pela dor, enquanto o mundo exterior é representado pela festa. Ambos se fundem, na transitoriedade da vida. O vinho é assim, tanto na poética omariana, como na pessoana, um recurso surpreendente e que é recorrente. O epicurismo de ambos, ou a doutrina da procura da felicidade a partir da busca dos prazeres moderados, constitui-se como um modo de afastar a desesperança e a melancolia da vida. O vinho aparece também como possibilidade de ultrapassar e esquecer amores antigos, como neste ruba’i.
Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
Não podemos, todavia, esquecer que o vinho é um dos elementos-chave na mística sufi, que atravessa os ruba’iyat de Fernando Pessoa. Como já sugerimos, Fernando Pessoa conhecia o pensamento sufi através das leituras, não só de Omar Khayam, como também de Rumi e de Hafiz. E, na mística sufi, o vinho tem um significado profundo. O vinho e o copo, tal como são referidos na poesia amorosa sufi, são metáforas da complementaridade entre as práticas religiosas exteriores (copo) e do êxtase espiritual interior (vinho). O Sufi encontra a Beleza em tudo, quando finalmente se pacifica e o seu coração é um espelho polido que reflecte a Luz Divina.
Podemos ainda estabelecer algumas analogias entre Omar Khayam e Pessoa, pois eles tomam como foco muito particular o «poder implacável do Fado sobre as acções humanas, impedindo a realização dos desejos e a renovação da esperança», nas palavras de Márcia Feitosa (idem, p. 14). Face ao acto de viver que se resume em cansaço, enfado e efemeridade, o melhor é sonhar, para ter esperança. Vários ruba’iyat de Pessoa ortónimo ilustram essa forma de encarar a vida. E, face a essa desesperança, o homem entrega-se aos braços celestiais do vinho. E algumas ruba’iyat de Pessoa vão encontrar-se com Khayam, «deixando-se enlevar pela bebida trazida por Sáki (aquela que deita vinho nas taças omarianas) e pelo abandono à vida.» (idem, p. 15).É precisamente no intervalo — motivo pessoano por excelência — entre o ser e o estar «que o poeta se volta para o mundo exterior e se entrega ao prazer».(idem):
Quanto fui jaz. Quanto serei não sou,
No intervalo entre o que sou e estou,
A natureza, exterior, tem Sol,
Mas se tem Sol, há Sol. Ao Sol me dou (…).
O que pretendi foi mostrar as afinidades entre o pensamento de Khayam e de Pessoa, à luz dos seus ruba’iyat. E como se mantém viva na poesia de Pessoa a tradição da poesia mística e sufi, tanto de Khayam como de Rumi, que foram grandes pensadores da Idade Média, tão diferentes do pensamento cristão e castrador dos prazeres físicos e sensoriais, exaltando os prazeres como forma de sublimação da experiência humana.
[1] https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue9/PDF/I9A06.pdf
[2]Nancy, Jean-Luc, Ivresse, Bibliothèque Rivages, Éditions Payot & Rivages, Paris, 2013, p. « 37 : « L’ivresse est condition de l’esprit, elle donne à sentir son absoluité, c’est-à-dire sa séparation d’avec tout ce qui n’est pas lui (…). L’ivresse est elle-même l’absolutisation, le désenchaînement, l’ascension libre jusqu’au dehors du monde. » .
[3] Feitosa, Márcia Manir Miguel, “Uma leitura de Fernando Pessoa «ele mesmo» à luz do Ruba’iyat de Omar Khayyam», in revista Mirandum I-1.
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SAUDAÇÕES POÉTICAS, MARCOS MENDES PONTEVEDRA – BRASIL
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