António Carlos Cortez é uma voz destacada na poesia portuguesa. Além de premiado por diversas vezes (em 2011 pela obra «Depois de Dezembro», pela SPA; em 2017 foi Prémio APE, com «A Dor Concreta» e Prémio nacional Ruy Belo e Prémio António Gedeão/FENPROF pela obra «Jaguar». Ainda prémio de poesia APE/Maria Amália Vaz de Carvalho, pela obra «Diamante», em 2022). Registe-se, para que conste: foi também finalista do Prémio Correntes d’escritas (2016) e finalista do Prémio Oceanos (2017) e do prémio DST Group em 2022.
Mas os méritos de António Carlos Cortez não se ficam por aqui. É um crítico literário consagrado, um cronista comprometido e ainda se aventurou pela ficção com Um dia Lusíada, publicado pela editora Caminho. Tem ainda um livro de contos no prelo, a sair este ano. Todavia, é na área da poesia que ACC que se encontra a maior parte da sua obra.
O seu primeiro livro foi publicado em 1998, intitulado «Ritos de Passagem» e, desde aí, já foram editados mais 16 livros de poesia, um facto que revela um percurso sólido e profícuo, pouco usual na poesia actual portuguesa.
Ressalto ainda a dimensão cívica de António Carlos Cortez na defesa de um Ensino de qualidade, mais fundado na leitura e na interpretação do texto literário e menos nos artifícios da técnica e do digital.
Se a experiência de publicar, em muito jovem, foi uma alegria, como ele próprio o afirmou numa entrevista que me concedeu em Maio de 2021, aquando da primeira edição de «Skin Deep», com o tempo e com a maturidade, publicar e intervir transformou-se num acto de exigência crítica.

O que mais chama a atenção sobre a sua voz é uma procura incessante do rigor da linguagem e da fuga ao cliché literário. A sua experiência de crítico de poesia e de leitor da literatura, da história, em especial das questões político-económicas e culturais da Modernidade, é condição essencial da sua escrita poética. E essa exigência é também resultado de um profundo respeito e de uma aprendizagem com poetas portugueses como Carlos de Oliveira, António Ramos Rosa, Luís Miguel Nava, Ruy Belo e o seu mestre, Gastão Cruz, presença óbvia neste livro, em particular no poema «Existência», na página 87.
É um poema tocante em que o poeta diz, na segunda estrofe: «Ensinou-te muito e da poesia/praticamente tudo. Um dia disse-me/diz não ao fácil(…)».
Mas a presença de um universo referencial alargado, ancorado na cultura livresca não se esgota na poesia portuguesa, fortificando-se nos ecos de Rimbaud, Baudelaire, Pessoa, Yves Bonnefoy, Leonard Cohen, Wallace Stevens, Sandro Penna, Rilke, Alfonso Costafreda, entre tantos outros que o poeta reconhece como autores da sua constelação. As próprias epígrafes dão-nos guias e entradas facilmente reconhecíveis.
Todos estes autores estão «presentes» nesta nova edição de «Skin Deep», agora revista e aumentada com 15 poemas inéditos e recentes, numa Terceira secção intitulada «Sal sobre as Feridas», que se vieram juntar aos 39 poemas da edição anterior. A coerência e a consistência desta segunda edição é evidente, sobretudo porque ela se funda na relação entre a música e a poesia que aqui se tece, em Skin Deep.
«Skin Deep» deve o seu título a uma música dos The Stranglers, o que remete para um universo intimista, em que o poeta se desnuda e a poesia se entrelaça com o universo musical do autor, nomeadamente nos anos 80, o período da sua juventude.
Como ACC nos diz na referida entrevista à Caliban em Maio de 21, no caso de «Skin Deep», há a música dos The stranglers, que dá título ao livro, mas também a música dos The Smiths, o jazz de Curtis Mayfield, de Miles Davis, os sons de de Baden Baden, os poemas de Bertrand Cantat, vocalista dos Noir Désir, as imagens dos Rádio Macau e todas as músicas que «impuseram a atmosfera nocturna e musical destes 39 poemas onde amor, magia, memória e música se aliam».
Esta poesia, como o nota Isabel Cristina Mateus, que estabelece um acutilante diálogo intertextual entre a poesia de Luís Miguel Nava e alguns dos poemas de António Carlos Cortez, tem uma relação forte com a «uma certa vivência urbana da noite». Referimo-nos aqui à banda sonora do passado e aos poemas encenam essa memória dos anos 80.
Ao lermos estes poemas estamos a reviver essas sonoridades, provenientes das bandas da época e ACC remete-nos para o universo mágico e incandescente que se vivia então nas noites de Lisboa. Ouçamo-lo no poema em prosa «Midnight summer dream (1981»:
«vamos ouvir essa música depois da meia-noite, depois de o teclado percorrer o diapasão dum tumulto urbano, depois de as imagens nos levarem a mil novecentos e oitenta e um, época ainda herdeira das magias dos vinte anos anteriores, dos corpos querendo subir à imaginação dos dias» (p.46),
Ouçamos ainda o sujeito poético dizendo: «eu ouvia essa música e sonhava em estar no centro do sangue (…)». No centro do sangue dá uma dimensão fortemente imagética e próxima do universo de Luís Miguel Nava, numa escrita visceral e alegórica, em que o significado remete sempre para uma componente simbólica. A este propósito vale salientar o poema «Paisagem Urbana», em que ACC evoca o poema «Paisagem citadina», de Luís Miguel Nava.
Também em Luís Miguel Nava, como ressalta Isabel Cristina Mateus, a sua poesia é uma grafia da pele, como em «Skin Deep», uma tatuagem que se inscreve não apenas no corpo, mas também na memória, é uma escrita voraz e que traz o incêndio, o da própria vida. A música acompanha sempre essa incandescência, em ACC, a liberdade da sua experiência e é «a astúcia que liberta quem escreve da cerebral melodia que apaga o voo alto da linguagem.» (p. 49).
ACC soube trazer à poesia contemporânea essa «libertação» da racionalidade; e que Luís Filipe Castro Mendes viu muito bem, no texto sobre Skin Deep, publicado na Colóquio Letras, pois o autor de Skin Deep introduziu elementos que trazem à poesia a desmesura da linguagem, como a música ou o poema em prosa. E isso traz-me à memória as palavras de Eduardo Lourenço: «Nós não pensamos em nada, não há um homem propriamente «pensante», nós ouvimos.» (Da Música)
Num precioso livrinho de Jean-Luc Nancy, «L’Ivresse», o filósofo fala da embriaguez — e aqui falo da embriaguez que a música provoca — como uma das condições do espírito poético, dizendo: «A embriaguez é ela mesma a absolutização, o desencadeamento, a ascensão livre para fora do mundo»[1]. É precisamente este movimento de «ascensão livre para fora do mundo» o que a música proporciona, sublimando a experiência humana.
Os poemas em prosa de ACC nesta obra, como já vinham sendo desde a sua trilogia poética iniciada com Corvos Obras Chacais, em 017, são bem a expressão deste «salto» de que a poesia nos dá conta, e que podemos designar por ressemantização da linguagem. Poética, portanto, do desbragamento dos sentidos a que a experiência das noites e do frenesim (p. 50) dos corpos, da velocidade da escrita ao som da música, «um vento que todos trazíamos e era o vento da paixão.»
O próprio poeta dá-nos a chave desta interacção entre a poesia e a música no poema «A música e a poesia»:
«A poesia nasce da música, mas sobretudo para mim, de certa música, quando há um ritmo que defino como «melancólico-sensual», um ritmo que exige a escrita outra, a outra escrita que está por dentro da escrita e produz, no cérebro empenhado em ser motor de imagens, deflagração de um incêndio erótico, a sucessão de planos.» (p. 54).
E depois fala-nos de uma febre ou de um furor, de uma intensidade que acompanha a sua escrita, «numa espécie de violência sexual, de desejosa energia vital» (idem). É precisamente deste desbragamento dos sentidos que falo quando aludo às palavras de Jean-Luc Nancy. É de uma ordem de «fascínio e perigo», como constata o próprio poeta, a condição essencial para «escrever como quem ama e não como quem escreve.» (p. 55).
O desejo erótico que acompanha esta escrita da pele e na pele (já assim o tinha dito Isabel Cristina Mateus) é assim o núcleo fundamental desta poética, guiada pela indissociabilidade entre música e poesia, em que aquela é o fermento desta. O poema mostra-se, assim, como «carnívora voz» (p. 56), pois «tudo no poema, na minha poesia, tudo deriva em música, a música explode-me nos poros» (p.56), tudo isto o próprio poeta diz em «Pele profunda, a música», na página 56.
É extraordinária a capacidade de transfiguração que existe nesta obra poética, tão contrastante com a poesia que se vai fazendo nos dias de hoje porque Cortez sobrepõe planos, o concreto, o abstracto, o clássico e o contemporâneo, o erudito e o popular, a violência é a sensualidade, a ternura da pele, o rigor do papel. E ainda a propósito de transfiguração, ressalto o poema «Laboratório Químico», em que o poeta nos fala dessa dimensão oficinal da poesia:
«Com trabalho silencioso entrar no laboratório/e ver na palavra-conceito o seu extermínio/a lenta transformação do óxido em precipício/Uma palavra translúcida recupera a forma e traz a norma austera que persigo.» (p. 24).
Esta norma austera a que o poeta alude é o rigor oficinal que preside ao seu trabalho.
A intenção do poeta está expressa na página 99: «Disso se trata na poesia: de construir um artefacto verbal que, na sua música, nas suas imagens, na sua tentativa de dar corpo a experiências vívidas, ao ser lido igualmente faça o leitor sentir que podiam ser suas as imagens e a música do que leu. Sal sobre feridas, a poesia — nas imagens e ritmos, ardendo.»
Em «Arte Poética (7.30 da manhã), ACC entrega-se ao «Exercício de moldar o que por dentro/busca a forma da metamorfose», referindo-se ao acto de escrever. Trata-se de um olhar metapoético, que reflecte sobre a natureza da própria arte poética, como nos diz o título.
Cultor exímio das formas clássicas, também neste poema se revela todo o seu conhecimento e sensibilidade poética. Nesse exercício a que ele se alude, fala «dum jeito que te levou sempre ao soneto/do soneto à combustão dentro do tempo».
Se, como Paul Valéry dizia, «o poema é uma hesitação entre o som e o sentido», ACC é o exemplo acabado disso. A forma da metamorfose a que obedece o poema, dá-se nessa «hesitação», sabendo o autor de diamante que o domínio da arte poética reside na justeza dessa relação entre música e sentido, numa condição rítmica que se apresenta no poema.
Na última secção, como o próprio título o indica, relativo aos 15 poemas inéditos, há uma dimensão mais saturnina ou mais melancólica, em que os poemas nos dão conta de um ciclo de perda e de dor. Como o poema de homenagem a Jorge Silva Melo ou o poema «Existência», alusivo a Gastão Cruz, faz-se o «Balanço existencial»: «Naufragamos/incertos nas explosivas cardíacas/recordações Feridas abertas(…)» (p. 89). A dor ressuma nesses versos, onde o poeta se desnuda, mas nunca cai na cilada fácil do sentimentalismo. No poema «noite insone», como no poema «Na noite», fala-se de perda e de dor e a poesia ressalta aqui como o gesto de lhes conferir sentido. E, no último poema, intitulado «Poema», a questão do sentido, um «oculto sentido», ACC fecha o ciclo de Skin Deep aludindo à «pele», definindo o poema que «vive a sua cremação (…) até na pele não restar já nada». Mais uma vez reaparece a escrita como uma tatuagem, como uma escrita da pele.
Num mundo cada vez mais frio, em que a solidão é um dos grandes males do mundo, dominado pela ausência e pelo distanciamento, a poesia de ACC devolve-nos ao calor da palavra e à intimidade das relações. Tudo, neste livro, apela ao diálogo e à chama partilhada da linguagem, nesse que é o mais alto voo da linguagem.
[1]Nancy, Jean-Luc, Ivresse, Bibliothèque Rivages, Éditions Payot & Rivages, Paris, 2013, p. « 37 : « L’ivresse est condition de l’esprit, elle donne à sentir son absoluité, c’est-à-dire sa séparation d’avec tout ce qui n’est pas lui (…). L’ivresse est elle-même l’absolutisation, le désenchaînement, l’ascension libre jusqu’au dehors du monde. » .