Jorge Luís Borges: o poeta cabalista

Começo a compreender o que Jorge Luís Borges queria dizer, quando afirmava, nas suas entrevistas, que já só relia. Na minha sofreguidão de adolescente, todo o tempo de que dispunha era para ler, autores que desconhecia, poetas, ficcionistas, ensaístas. Não compreendia verdadeiramente o que significava esse acto de releitura, de regresso aos clássicos, confundindo-os naquele onirismo que marcava o seu universo literário.

Constato hoje que Borges está “fora de moda”. Recuperam-se autores malditos (a quem não retiro qualquer prestígio), mas os clássicos, os grandes cultores da língua e da literatura mundial parecem demasiado sérios. Talvez não sejam suficientemente bêbados ou drogados, nem sequer escandalosos e polémicos, por forma a suscitarem uma tendência natural para a coscuvilhice dos actuais escritores, fascinados pelas redes sociais e pela efemeridade dos acontecimentos.

Uma das razões que me leva a amar tanto Jorge Luís Borges, entre muitos outros, é a sua densidade metafísica e o facto de a sua escrita permanecer nesse limbo onírico entre o sonho e o real, avessa a rótulos. Era o mais europeu dos escritores argentinos e, mesmo, sul-americanos, pois a sua infância, passada na Europa, permitindo-lhe o acesso à cultura e à literatura europeia, vincou-lhe a escrita, conferindo-lhe um pendor classicista, que mais nenhum autor sul-americano possui.

Jorge Luis Borges (1899-1986) nasceu numa família de classe média com boa educação. A mãe de Borges, Leonor Acevedo Suárez, veio de uma família tradicional do Uruguai. O seu livro de 1929 Cuaderno San Martín incluiu um poema, “Isidoro Acevedo”, em homenagem ao seu avô materno, Isidoro de Acevedo Laprida, um soldado do exército de Buenos Aires que se opunha ao ditador Juan Manuel de Rosas.

Parece que, segundo um estudo realizado por Antonio Andrade, Jorge Luis Borges tinha ascendência portuguesa, pelo lado do seu bisavô, Francisco, que teria nascido em Portugal, em 1770 e teria vivido na localidade de Torre de Moncorvo, antes de emigrar para a Argentina, onde se casou com Cármen Lafinur.

Aos sete anos de idade esse menino prodigioso já teria revelado ao seu pai que seria escritor. Aos nove escreve seu primeiro conto, “La visera fatal”, inspirado num episódio de Dom Quixote. Em 1914 parte, com os pais, para a Europa, tendo morado inicialmente em Genebra, na Suíça, onde conclui os seus estudos, e depois em Espanha. Em 1921, Jorge Luís Borges regressa a Buenos Aires, onde participa activamente da efervescente vida cultural da cidade. Em 1923, publica o seu primeiro livro de poemas, “Fervor de Buenos Aires”, numa edição de autor. Foi assim que se iniciou uma das mais brilhantes carreiras literárias do século XX. Borges regressa, finalmente, à Suíça e foi em Genebra que morreu, com idade avançada.

Borges era fluente em várias línguas e lia avidamente enciclopédias, desde criança. O que lhe permitiu uma erudição extraordinária, cultivando um género literário que era a literatura fantástica, tendo criado obras-primas como Ficciones (1944) e O Aleph (1949), narrativas de histórias breves que cruzam temas comuns, explorando o onirismo e o simbolismo. Os seus temas mais usados (e mais perturbantes, também) são os sonhos, os labirintos, as bibliotecas, os escritores fictícios e livros fictícios, Deus e a religião (sobretudo o judaísmo e a cabala, mas também o budismo, a muçulmana, etc.). Mas também aborda a mitologia. Uma das razões que mais impulsionaram a literatura de Borges e os seus enigmáticos temas, foi a sua crescente cegueira, obrigando-o a recorrer a um simbolismo que cruzava a literatura e os seus símbolos com a sua imaginação, dialogando com os grandes clássicos, como Virgílio, Homero, Luís de Camões, Cervantes, entre muitos outros. A sua relação (de aprendizagem) com o cabalista e historiador Gershom Scholem permitiu-lhe o acesso, não só ao estudo do hebraico, como também ao universo da cabala e do misticismo judaico, que aparece nos seus magníficos contos (e também poemas) como, por exemplo, O Golem

Entre os seus contos mais conhecidos e comentados podemos citar A Biblioteca de Babel, O Jardim das Veredas que se Bifurcam, Pierre Menard, Autor do Quixote, Funes, o Memorioso, todos incluídos em Ficções (1944). Porém, à medida que a cegueira o ameaçava de forma progressiva, dedica-se sobretudo à poesia, escrevendo obras como A cifra (1981), Atlas (1984) e Os Conjurados (1985) foi a sua última obra.

O extraordinário conto Tlon, Uqbar, Orbis Tertius  refere-se a uma enciclopédia construída  por uma sociedade secreta ao longo de gerações, que tem como objectivo “inventar” um planeta imaginário, com os seus idiomas, a sua física, a sua política, as suas ciências e as suas culturas.

Deixo-vos com “Adrogué”:

Nadie en la noche indescifrable tema
Que yo me pierda entre las negras flores
Del parque, donde tejen su sistema
Propicio a los nostálgicos amores.

O al ocio de las tardes, la secreta
Ave que siempre un mismo canto afina,
El agua circular y la glorieta,
La vaga estatua y la dudosa ruina.

Hueca en la hueca sombra, la cochera
Marca (lo sé) los trémulos confines
De este mundo de polvo y de jazmines,
Grato a Verlaine y grato a Julio Herrera.

Su olor medicinal dan a la sombra
Los eucaliptos: ese olor antiguo
Que, más allá del tiempo y del ambiguo
Lenguaje, el tiempo de las quintas nombra.

Mi paso busca y halla el esperado
Umbral. Su oscuro borde la azotea
Define y en el patio ajedrezado
La canilla periódica gotea.

Duermen del otro lado de las puertas
Aquéllos que por obra de los sueños
Son en la sombra visionarios dueños
Del vasto ayer y de las cosas muertas.

Cada objeto conozco de este viejo
Edificio: las láminas de mica
Sobre esa piedra gris que se duplica
Continuamente en el borroso espejo.

Y la cabeza de león que muerde
Una argolla y los vidrios de colores
Que revelan al niño los primores
De un mundo rojo y de otro mundo verde.

Más allá del azar y de la muerte
Duran, y cada cual tiene su historia,
Pero todo esto ocurre en esta suerte
De cuarta dimensión, que es la memoria.

En ella y sólo en ella están ahora
Los patios y jardines. El pasado
Los guarda en ese círculo vedado
Que a un tiempo abarca el véspero y la aurora.

¿Cómo puede perder aquel preciso
Orden de humildes y pequeñas cosas,
Inaccesibles hoy como las rosas
Que dio al primer Adán el Paraíso?

El antiguo estupor de la elegía
Me abruma cuando pienso en esa casa
Y no comprendo cómo el tiempo pasa,
Yo, que soy tiempo y sangre y agonía.

Jorge Luís Borges, “El Hacedor”

 

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