Por João Oliveira Duarte (texto de apresentação do livro)
Numa nota mais pessoal, gostaria de começar por dizer que me é bastante difícil falar deste livro sem falar da Maria João, de quem tenho a sorte de ser amigo e com quem tenho o privilégio de trabalhar há já algum tempo. Não consigo falar dele sem recordar desde logo o riso da Maria João e a sua alegria, a sua particular e singular alegria do pensamento que, contrariamente ao que se pensa, não vai sem uma face melancólica, sem um inquérito rigoroso ao que Benjamin chama, no seu livro sobre o drama lutuoso alemão, de “profundezas da esfera criatural”. Porque, de facto, não consigo pensar a alegria fora deste luto antecipado enquanto condição de possibilidade do encontro e se Nietzsche dizia, algures, que não conseguia conceber um deus que não dançasse é porque, de facto, também deus é mortal. Foi através deste livro, já há muitos anos e antes de a conhecer, que ouvi falar pela primeira vez na Maria João e posso confidenciar agora que senti na altura uma inveja imensa desse belo título, que tanto nos dá que pensar, do rigor da análise e do seu lado contemporâneo ou, como diria de novo Nietzsche, o seu lado intempestivo, dessa escrita que, também de forma muito benjaminiana, assim o quero crer, é sempre contra o seu tempo e a favor de um tempo por vir. Esta dobra utópica ou, diria antes, atópica, o sem lugar que configura a urgência tanto do pensamento como da escrita, está presente nestas palavras que a Maria João partilha com Walter Benjamin: messianismo e redenção; palavras que, tanto num como noutro, não nos deixam em paz, que pedem sempre o quinhão ao pensamento e à escrita, que são também injunções tanto políticas quanto éticas ou estéticas, que não configuram a paragem do pensamento ou um qualquer retorno nostálgico mas, pelo contrário, são a mudança de respiração, uma certa interrupção e paragem que nos obriga e nos força a pensar.
No dia em que se fizer a história da recepção de Walter Benjamin em Portugal, este livro da Maria João será uma chave fundamental para a compreensão da mesma. Ele situa-se como ponto charneira da segunda geração de leitores de Walter Benjamin, segunda geração que se segue e que é herdeira, uma herança, aliás, nada a contragosto contrariamente a outras heranças, de figuras como Filomena Molder, João Barrento ou Bragança de Miranda. O mais interessante, aliás, é ver como esta história percorre o livro de uma ponta à outra e como as clivagens e as diferenças que existem na recepção de Benjamin encontram uma tensão produtiva na própria formulação conceptual da alegoria. Porque, se por um lado o livro herda da Filomena Molder, por exemplo, um Benjamin mais místico-teológico e alicerçado nas leituras dos primeiros textos (o texto sobre a tradução e a linguagem, por exemplo), por outro esse Benjamin místico-teológico, próximo de Scholem e da mística judaica – a Maria João realça, aliás, que o conceito de rememoração de Benjamin lhe chega da “categoria judaica da recordação, que designa, não a conservação na memória dos acontecimentos passados, mas sim a sua reactualização na experiência presente” – por outro lado esse Benjamin místico-teológico não vai sem uma leitura política, sem essa compreensão do tempo enquanto urgência a que é preciso dar resposta. É, aliás, assim que a Maria João nos lê a famosa passagem, um pouco críptica, da segunda tese de Sobre o Conceito de História, onde Benjamin afirma que “fomos esperados sobre a terra” e que há um acordo secreto entre “as gerações passadas e as nossas”. Se uma forma de ler este acordo secreto seria, sem dúvida, uma espécie de cadeia ininterrupta de seres que se perde tanto para o passado como para o futuro – mas que encontra na morte a sua chave à maneira do Hermann Broch de A Morte de Vírgilio, na medida em que essa cadeia ininterrupta é, de forma bastante alegórica aliás, a produção infinita de cadáveres e só no impossível momento da morte é que poderemos reencontrar essa cadeia – a maneira como a Maria João a lê é, parece-me, bastante mais intempestiva, política e urgente:
“trata-se, assim, não apenas de evocar e convocar o passado para um encontro misterioso com o presente, mas também com um futuro, que permanece como expectativa, nessa abertura do campo da história, instaurado pelo materialismo dialéctico, uma vez unido e reconciliado com a teologia. Poderíamos mesmo, a título de conclusão, afirmar que um certo passado nos olhos, aguardando a nossa resposta, esperando secretamente que elevemos para ele os nossos olhos”
Este encontro, que é ao mesmo tempo inadiável e impossível, parece-me uma das formas privilegiadas através das quais a Maria João pensa a alegoria através e com Walter Benjamin. Aliás, um dos motivos mais belos deste livro – motivos como na pintura – é a forma elegante e económica como a Maria João lê a obra de Benjamin usando como cifra, como chave, a alegoria. Naquelas discussões sobre a continuidade ou descontinuidade dentro da obra de um autor, discussões que têm tanto de interminável como de chato e bolorentas, a solução que a Maria João encontra é bastante interessante. Não se trata, antes de mais, de tentar encontrar um corpo de teses estáveis que permaneceriam iguais a si próprias ao longo de todos os textos numa espécie de, como diria Foucault, economia do autor, autor que seria, de facto, esse corpo meio fantástico, meio fantasmático, que estaria mais ou menos presente neste e naquele texto, que evoluiria, etc., etc., etc; esta retórica é conhecida. Mas a Maria João também não implode as supostas fases sobre si mesmas, como se entre o primeiro Benjamin e um suposto segundo não existisse nada, não houvesse contaminação alguma. Pelo contrário, o seu gesto parece-me bastante elegante, económico e, acima de tudo, bastante próximo do próprio gesto de Benjamin. A alegoria funciona, com uma economia espantosa e rigorosa, como a cifra, o traço e o impensado de Walter Benjamin. Não se trata, então, de tentar ver como e de que forma é que a alegoria já se encontra presente nos primeiros textos de Benjamin e como é que ela ainda sobrevive nos últimos, mas de encarar a alegoria como uma mónada, como um cristal que ilumina, numa espécie de tempo intensivo, todos os textos dele, uma planta originária, à maneira de Goethe, que só existe num jogo, bastante sério, entre proximidade e distância, numa tensão que uma repetição diferencial instaura, num magnetismo que desenha as várias figuras de Benjamin que a Maria João convoca, o trapeiro, o colecionador, o flâneur, etc.. A alegoria como devir múltiplo e sem lei mas também como cifra escondida, como segredo impartilhável das profundezas das coisas. Este método que a Maria João usa, acho-o bastante próximo do procedimento de Walter Benjamin, como um segredo partilhado entre ambos, como o encontro impossível que o qual a Maria João é chamada. Leio-vos o que Benjamin afirma na Origem do Drama Lutuoso Alemão
“A partir do momento em que se interpretou este sintoma de despersonalização como um grau avançado de tristeza, a ideia que se fazia desse estado patológico em que as coisas mais insignificantes aparecem como chaves de uma sabedoria enigmática, porque nos falta a relação natural e criativa com elas, entrou num contexto incomparavelmente fecundo”
Este momento, em que as coisas mais insignificantes aparecem como chaves de uma sabedoria enigmática, é a forma através da qual a Maria João convoca as várias figuras, que cartografa a obra de Benjamin. E aparecem como chaves de uma sabedoria enigmática porque, acima de tudo, nos dizem respeito, nos chamam, e dizem qualquer coisa sobre o nosso próprio tempo.
Giorgio Agamben, em A Ideia de Prosa, defende que o nosso tempo, despido de qualquer emoção fundamental e que parece, como em certos desenhos animados, caminhar no ar apenas até ao momento em que se apercebe que por debaixo apenas encontra o vazio, encontra num conjunto de obras entre 1915 e 1930 a chave para a sua compreensão. Estas primeiras décadas do século passado, esse tempo desabrido que detém o nosso segredo, foi vivido e pensado por Walter Benjamin de uma forma que me parece particularmente singular e relevante. Dele disse Adorno, salvo erro, que foi dos poucos que tentou pensar o que havia a pensar, num tempo em que o pensamento se encontrava também ele exposto às pulsões mais temíveis e obscuras. E é dessa intempestividade do pensamento de Benjamin que nos dá conta a Maria João ao cartografar as figuras, ao mesmo tempo próximas e distantes de nós, que Benjamin interrogou e nas quais leu o seu e o nosso tempo. Falando sobre o trapeiro, aquele que recolhe tudo quanto a grande cidade rejeitou, e a proximidade ao poeta, diz-nos a Maria João:
“É bem a visão ou um olhar sobre a história humana que aqui se patenteia, como se, no interior da visão moderna, cada figura alegórica se posicionasse como um ângulo diverso de um mesmo olhar e que não poderia senão devolver-nos uma visão cubista do mundo humano: fragmentada, arruinada e que se repete na sua simultaneidade, em estilhaços. Por isso, à semelhança do anjo alegórico (…) o que se procura é salvar as coisas (…) por entre os detritos ou escolhos dessa experiência histórica, e destituída de alma, do homem moderno, a experiência vivida do choque”
Gostaria de terminar convocando um poeta que, sabemos todos, é uma paixão da Maria João mas também minha e de todos aqueles “amigos errantes espalhados pela face da terra” de que falava Wittgenstein.
“só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema (…) Poemas são também oferendas – oferendas àqueles que são atentos. Oferendas que transportam um destino”
Esta oferenda, este dom e este aperto de mãos, liga-se em Celan à secreta ligação que une o pensar, o agradecer e o rememorar.
“Na nossa língua, denken (pensar) e danken (agradecer) são palavras da mesma raiz. Quem lhes seguir o sentido, depara com o campo semântico de gedenken (lembrar), ein gedenken sein (rememorar), Andenken (recordação)”
A rememoração, palavra partilhada pela Maria João e por Benjamin, enquanto agradecimento e pensamento, é este encontro inadiável e impossível através do qual se aperta a mão ao passado que chega. E lembra-me sempre um pequeno texto de Benjamin, de Infância Berlinense onde “o relógio da escola parecia estar danificado por culpa minha. Marcava a hora “atrasado”. E ao corredor chegava, vindo das salas de aula por onde passava, o murmúrio de misteriosas conversações. Do lado de lá das portas, professores e alunos eram amigos. Ou então ficava tudo em silêncio, como se esperasse alguém”. Há qualquer coisa, no nome, que nos chama e ao qual chegamos sempre atrasados e não há rememoração que não se diga na forma deste encontro impossível, encontro tanto mais inadiável quanto mais impossível for. É por este tipo de encontros que hoje agradeço à Maria João.