Maria, quando é que surgiu a sua vontade de escrever ficção e de publicar?
A escrever comecei cedíssimo, como comecei a ler. A minha mãe impingia-me livros de menina, como aqueles contos da Condessa de Ségur, e eu era uma maria-rapaz, achava aquilo tudo sem piada nenhuma, então comecei a inventar as minhas próprias histórias. Cresci sem televisão, em África, aborrecia-me imenso e, portanto, ou andava na vadiagem e de bicicleta, a subir às árvores e à pancada com a rapaziada ou, então, estava a ler e a escrever. Descobri muito cedo Júlio Verne e Stevenson, a minha sorte. Lia muito. Li sempre muito. E a minha necessidade de escrever vinha daí.
A publicar só comecei muito tarde, pelos meus 35 anos (embora houvesse umas experiências esporádicas na adolescência, que destruí aos 18 anos, por incompleta satisfação). Comecei a concorrer a alguns prémios e isso deu-me alguma segurança e aventurei-me a publicar. Mas fui um pouco empurrada pelos amigos, que achavam que valia a pena eu publicar. Nunca tomei eu a iniciativa. Há literatura tão boa, não via porque haveria de publicar. Depois de ler Borges, Dostoievsky, Tolstoi, Proust, Thomas Mann e por aí adiante, ficamos sinceramente a pensar que não vale a pena. Os amigos, especialmente o meu primeiro editor, da Diferença, em Leiria, e outros que ouviam e liam alguns textos meus impulsionaram-me a publicar. Nessa altura já escrevia muito para jornais e revistas, mas eram sobretudo críticas e recensões.
Onde é que, por norma, encontra a inspiração para escrever as suas obras?
Na música, que me faz despertar para imagens poéticas, por exemplo. Muitas vezes na literatura e nos autores que leio, às vezes já nem me lembro de quem, mas as histórias ficaram-me. Frequentemente são histórias de autores que li, outras que são extraordinárias e que quero contar, coisas que me tocam (na poesia). Na ficção, parto muitas vezes de imagens poéticas que crescem, de forma selvagem, como no conto “Caligrafia da Solidão”, de que gosto muito. Uma homenagem ao meu amigo Vicente Franz Cecim, o mago de Andara, o grande escritor da Amazónia, para mim. Essa contaminação de Andara, mundo xamânico e cheio de forças míticas, sagradas, veio ter comigo através dos livros de Cecim. Nesse conto que escrevi, “Caligrafia da Solidão”, é uma espécie de Golem o que ali está, mas não é tanto rabínico ou da tradição judaica e cabalística, mas mais ligado ao poder da terra e da criação genesíaca, aliás a fonte deste mito. Porém, na ficção e de forma geral, gosto de histórias e de mitos, gosto de os trabalhar como matéria-prima. Fazem parte da nossa tradição, mas são contemporâneos e transversais a todos os tempos.
Como a minha formação é filosófica, sou assumidamente atraída pelos temas da filosofia, melhor dizendo pelos temas do pensamento: a morte, a linguagem, o tempo, o poético, o conhecimento, a infância ou a inocência… Volto sempre a eles. A realidade, propriamente dita, o quotidiano e o que nele acontece, a menos que haja aí uma nota ética, pouco me interessa. Poeticamente sim, mas na ficção não. Daí que esteja sempre com um pé no fantástico.
Quais as temáticas mais presentes na sua escrita?
Essencialmente questões que nos fazem pensar. A literatura que não faz pensar ou que não faz estremecer não serve para nada. Daí que os temas que mais me toquem sejam sempre os da morte, da memória, da linguagem, do mal, do sagrado ou da infância. Não quer dizer que não haja outros, mas, quase sempre, vou ter com eles ou tropeço neles. Os temas políticos e éticos também me interessam muito. Todavia, estamos sempre a mudar e isso também vai mudando ao longo da vida, não é?
Que aspetos destacaria relativamente à obra “Do Ínfimo”, que acaba de vencer o Prémio Literário Glória de Sant’Anna 2017?
É sempre difícil ao próprio autor, até porque não há distância, em julgar a sua própria obra. O que procurei aqui foi “descrever” uma poética do detalhe, no sentido da expressão de Aby Warburg, quando ele disse que “Deus está nos detalhes” (ainda que tenha sido utilizada por outros autores, posteriormente). Não gosto da imponência nem de grandes ideias, gosto ainda menos de grandes construções discursivas que anulam a importância do pormenor. Estamos hoje tão atordoados pelas luzes e pelo ruído que perdemos a capacidade de escutar e de olhar para as pequenas coisas que fazem a vida, os gestos, a fragilidade, o devir e a metamorfose incessante da vida, o seu lado sagrado e enigmático. Do Ínfimo procura também o diálogo com alguns grandes autores/poetas como Rilke, Celan, Rumi, mas também pensadores como Heraclito, Benjamin. Fala-se ali da música ou do vento que nos traz as vozes do passado e da infância, sempre a memória em visita, uma certa nostalgia da leveza dos dias antigos. Há também uma parte mais política no livro, que reflecte a actualidade, esse lado catastrófico que vivemos hoje em modo acelerado com o descambar da velha Europa e dos seus ideais humanistas, como os refugiados, a perda de sentido do optimismo da União Europeia. Do ponto de vista crítico não saberia dizê-lo, não tenho a distância necessária.
Quais os momentos mais marcantes no seu percurso enquanto escritora?
A primeira vez que vi um poema meu, publicado. Tinha 15 ou 16 anos, não me lembro bem. Não disse a ninguém e o meu pai deu de caras com ele, no jornal. Fui sempre muito discreta. Mais tarde recebi alguns prémios por inéditos, que sempre me surpreendiam, pela positiva. O primeiro livro de poesia foi o resultado disso, por exemplo. Quando publiquei A Garça fui nomeada, por dois ou 3 críticos da praça, como um dos melhores livros do ano. Era o primeiro. E no Brasil cheguei à final do Prémio Telecom (2007), embora tenha sido Gonçalo M Tavares a ganhá-lo nesse ano. Foi totalmente inesperado. Houve também a nomeação dos melhores ensaios do ano, por Eduardo Prado Coelho (em 2002), infelizmente desaparecido e que nos faz muita falta no meio literário. E agora este prémio, também inesperado, já que o livro teve uma aparição tão discreta. Porém, marcante no sentido de experiência, gostaria de referir alguns grandes escritores e críticos que conheço e que me influenciaram, tanto afectivamente quanto na minha escrita. Os encontros, ainda que eu não seja dada a grandes idolatrias. O meu encontro com Cecim, por exemplo, o ter conhecido Helena Vasconcelos, numa altura em que estava a aparecer, Eduardo Prado Coelho, Maria Filomena Molder, Casimiro de Brito, Teresa Cadete, António Cabrita, Manuel Frias Martins, Teresa Martins Marques, Maria Gabriela Llansol, Rui Nunes, Jaime Rocha, Victor Oliveira Mateus, Hélia Correia, Helder Macedo, que foram muito importantes na minha formação e que me salvaram da minha insegurança atroz. Já sem falar da presença de pessoas amigas mais discretas, mas que estão sempre incondicionalmente a apoiar-me.
O que é, para si, um bom livro?
Aquele que nos faz pensar, que nos deixa desamparados ou que nos deslumbra. Os escritores têm famílias diferentes e podemos gostar de livros por diferentes razões e em diferentes estádios da nossa vida. Gostei muito do Camus, por exemplo, quando era jovem. Hoje não lhe acho tanta graça, mas não deixam de ser bons livros precisamente por terem marcado tanto várias gerações. Os livros de Hermann Hesse, que hoje estão um pouco fora de moda e ninguém os lê, são bons livros. “O Jogo das Contas de Vidro” é sublime. São os que mudam a nossa visão do mundo e que nunca mais nos abandonam. A nossa literatura está cheia de autores soberbos, mas absolutamente relegados ao esquecimento. E um bom livro não tem classificação, muitas vezes, escapa a tudo, transcende todos os géneros e não deve ser confundido como algo que nos entretém, pura e simplesmente, como a literatura light e essas «coisas» duvidosas. Felizmente que o tempo traz à tona (quando traz) o que é bom e coloca tudo no seu lugar. A literatura é uma coisa séria e tem andado a ser maltratada, era importante que a devolvêssemos ao seu lugar próprio e não tratássemos tudo da mesma forma, como se faz agora. Basta ir à televisão para se transformar um livro num best-seller. Isso não é nada. Mas as pessoas gostam cada vez mais de porcaria, o que é uma pena. Pagam o mesmo dinheiro e ficam mal servidas…
E o que faz de um escritor um bom escritor?
Isso é uma pergunta complicada, mas, antes de mais, tem de ser alguém sério no que faz. Aquela ideia do autor que publica necessariamente um livro por ano é muito perigosa. A literatura não tem pressa, é um trabalho moroso, lento, implica muito trabalho. Creio que as editoras grandes impõem um modelo de escritor que escreve como poderia estar a trabalhar numa fábrica. Eu não acredito nisso. Nem sempre temos coisas para dizer e sente-se que muitos escritores escrevem obedecendo a essas leis de mercado. O trabalho da escrita é exaustivo, não é só alinhar frases ou descrever. Isso é muito redutor (e perigoso). Há um pouco a ideia que basta saber escrever para se ser escritor. Não é apenas isso. Não há pior crítico de si mesmo que um bom escritor, sempre insatisfeito, inquieto e atormentado. Porque, nele, o “querer dizer” nunca se satisfaz.
Para terminar, gostaríamos que nos indicasse os seus 7 escritores de eleição e os 7 livros que, indubitavelmente, recomendaria.
Portugueses ou estrangeiros? Sou muito mais influenciada por autores estrangeiros que portugueses. E serei sempre injusta, porque faltam aqui tantos…
Hermann Broch – A Morte de Virgílio
Thomas Mann – Doutor Fausto
Marcel Proust – Em Busca do Tempo Perdido
Dante – Divina Comédia
James Joyce – Ulisses
Jorge de Sena – Sinais de Fogo
Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem