
O último romance de Marcia Tiburi
Nada deixa compreender uma certa indiferença à obra de Marcia Tiburi em Portugal. Ou quase nada, direi, pois creio que o perfil de activista e feminista não ajuda à sua entrada no mercado editorial português. Não afirmo que essa seja a razão essencial, mas é bizarro que alguém com uma obra tão marcante no panorama da literatura brasileira — tanto na filosofia, com os seus ensaios ousados, como na ficção — não atraia o olhar de um editor português, que não hesita em publicar autores brasileiros com menos qualidade (note-se que isto não é uma crítica aos outros autores). Não é por falta de visibilidade mediática, pois Marcia traz no seu currículo (para o bem e para o mal) essa inscrição clara no panorama mediático brasileiro, para o qual muito contribuiu a sua passagem pela TV Globo e do seu programa Saia Justa. Hoje, talvez ela não goste de ser lembrada por isso, pela simples razão de já não se reconhecer nesse formato televisivo, mas é colunista regular na CULT, uma revista cuja qualidade e prestígio nos impõe a sua leitura atenta.

As suas crónicas (pode pesquisar na Revista Caliban por algumas das suas crónicas e críticas) são aguerridas e corajosas, num país que atravessa uma crise política sem precedentes, ameaçadora e sem fim à vista. Portugal, atento no princípio ao que se passava no Brasil, parece ter-se habituado ao panorama anti-democrático que é hoje vigente no país, em que juízes e leis, aliados aos principais meios de comunicação, parecem ter-se apoderado do poder, legitimando pela lei o que não é legitimável. Raduan Nassar, na entrega do Prémio Camões 2017, deixou bem clara a situação que vive hoje o Brasil, de forma inconformada e subversiva, perante a qual o Ministro da Cultura reagiu de forma enfurecida. É neste país que vive Marcia Tiburi, bem como todos os brasileiros que viram frustradas as suas esperanças políticas, no dia em Dilma Rousseff foi destituída e substituída por Temer, esse guardião zeloso da mais conservadora ordem, reservando para a mulher (e exemplificando a sua mulher Marcela esse sonho do homem brasileiro conservador). Marcela é o exemplo da “bela, recatada e do lar” que não envergonharia o nosso ditador Salazar, a avaliar pela literatura feminina da época. É neste país, portanto, que vivem muitas mulheres que se vêem reduzidas no seu poder e no reconhecimento da igualdade dos seus direitos. É ainda neste país que vivem os defensores do direito à liberdade individual tão acerrimamente defendido e conquistado no Brasil, nas últimas décadas. Gays, transgénero, negros, mulheres, todas as classes que não viam garantidos os seus direitos, conheceram nos últimos governos a liberdade de expressão, a esperança de uma vida mais plena e, porque não dizê-lo, mais «civilizada», nesse sentido que entendemos ser hoje a consagração dos direitos individuais.
Marcia Tiburi é, além de uma escritora talentosa e de uma filósofa original; que toma por objecto de pensamento a própria actualidade da política e da sociedade, da comunicação e do quotidiano; uma activista política que tem também no feminismo a sua bandeira. Foi uma das grandes impulsionadoras do movimento “A Partida”, que proliferou no Brasil e que pôs as mulheres a discutir os seus direitos. É claro que virão muitos, e estarão no seu direito, dizer que a mulher brasileira já encontrou a igualdade de direitos (podendo até usar o exemplo de Dilma como presidente do país), mas há um país imenso em que as mulheres — sobretudo no interior — não acederam à educação e não estudaram e, por isso, estão longe do patamar que o género masculino atingiu. Não vamos mais longe: a violência contra a mulher no Brasil é ainda uma batalha a travar, apesar das leis dos últimos anos, como a lei da “Maria da Penha”. Só um país em que a mulher é ainda vítima do preconceito pode admitir os conselhos de Temer para a sua Marcela, a quem foram dadas funções meramente decorativas. Por isso, Marcia Tiburi é uma figura subversiva, não apenas pela sua posição crítica, relativamente à política, como também no aspecto em que desestabiliza a ordem vigente que se quer impôr no Brasil, num governo em que não há lugar para as mulheres nem para os negros (isso foi objecto de discussão na altura em que o governo de Temer assumiu as suas funções). Não há também lugar para o indígena. De repente é como se todas essas categorias existissem no Brasil, mas como decorativas, e não integradas no tecido social e político.
Espanta-me que os movimentos feministas portugueses (que não são organizados), referindo-me especificamente aos grupos de estudos sobre género e mulheres, não manifestem o seu interesse na obra de Marcia Tiburi, na qual poderiam reconhecer um dinamismo e uma actualidade irradiante para a sua própria pesquisa. Refiro-me aqui aos seus estudos sobre “Mulheres e Filosofia” (trabalho filosófico pertinente) ou as suas conferências incisivas sobre esses temas, que muito trabalhou. Talvez porque se ache que a mulher em Portugal já atingiu um patamar de igualdade quando isso afinal não passa de um mito? Lembremo-nos apenas, para contrariar essa beatífica ideia, da escassez das mulheres nos cargos políticos. Elas próprias não se encaminham para tais posições por não se verem apoiadas pelas cúpulas partidárias ou, então, nos cargos de gestão, onde não existem praticamente mulheres. Serão elas menos capazes de os desempenharem, quando manifestamente as suas habilitações o comprovam? Neste paradoxo evidente se abre toda a ambiguidade e a consequente dúvida que aqui coloco. Às vezes ouço mulheres extraordinárias e fortes como Maria Teresa Horta, Patrícia Reis, Isabel Moreira, Alexandra Lucas Coelho, Catarina Martins, Marisa Matias e outras a falarem e, imediatamente em contraponto, aparecem as invectivas masculinas que se agarram aos argumentos do “soutien queimado no Eduardo VII” e afins, com o claro propósito de desvalorizar os seus argumentos com ataques “ad hominem”. Sim, declaro-me uma leitora fiel das crónicas de Marcia Tiburi, atenta ao seu pensamento e admiro a sua coragem, num país minado pela “desesperança golpista”. E gostava de ver, confesso, as mulheres do meu país a olhar para os exemplos de escritoras e pensadoras brasileiras como Marilena Chauí e Marcia Tiburi. Mulheres que honram o nosso género e que têm, não apenas a coragem por nome, mas também a maior generosidade ao entregarem-se à defesa dos direitos do outro, transformando a sua obra e o seu pensamento em ética.
Ética viva, para ser aplicada no quotidiano. Não uma palavra vazia, mas um gesto contínuo e continuamente reactivado. Sem concessões.
Veja aqui a entrevista de Marcia Tiburi, a propósito de Como conversar com um Fascista.