Pouco após a publicação de A Rússia em 1839, em maio de 1843, o célebre escritor e filósofo russo Aleksandr Ivanovitch Herzen (1812-1870), o qual teve um papel importante no pensamento político russo a partir de meados do século XIX e foi considerado o fundador do socialismo russo[1], escreveu entusiasticamente que este «era o livro mais inteligente sobre a Rússia escrito por um estrangeiro» (Nora, 1975, p. 24). Não deixa de ser irónico o facto de um aristocrata, que sofrera na pele as consequências da Revolução Francesa, ter partido para a Rússia à procura de argumentos contra o governo representativo e contra os «excessos» políticos da França tenha regressado partidário das constituições. E que tenha também contribuído, pelos seus escritos, para animar as hostes socialistas da Rússia, as quais reconheceram na sua obra os defeitos da autocracia russa e prepararam a revolução e a libertação do sistema despótico dos czares. No belo filme de Alexander Sokurov, A Arca Russa, é bem a figura do grand Seigneur Custine que aparece, de forma fantasmática ao longo de todo o filme, como a voz da denúncia ou o próprio olhar exterior/estrangeiro, tão deslumbrado quão crítico da cultura e da sociedade russas.

Astolphe de Custine
Porém, quem é Astolphe de Custine, autor desta obra-prima que aqui se apresenta e cuja atribulada vida lhe trouxe tantos dissabores? Foi na mais tenra idade – ainda não tinha quatro anos – que perdeu o seu pai e o seu avô, o malogrado general Adam Philippe de Custine, condenado à morte por traição e guilhotinado, tal como o seu filho, que acorreu em sua defesa. Durante algum tempo viveu protegido num sítio remoto, enquanto a sua mãe, Delphine de Sabran, uma bela e corajosa aristocrata, acorreu a defender o sogro e o marido em Paris, em pleno período do governo do Terror de Robespierre. Por pouco ela própria escapou à morte e Custine descreve numa das cartas o modo como Delphine escapa à fúria da multidão, acicatada pelo ódio vingativo dos revolucionários. Após a morte do pai e do avô começa para Custine uma nova vida, no castelo de Calvados, entre uma mãe que vivia no terror de o perder e o seu célebre amante, o escritor François-René de Chateaubriand (1768-1848). O próprio Custine evocou a sua presença próxima, reconhecendo nesse homem o «seu primeiro guia na vida», aquele que, segundo o próprio, terá tido mais influência na sua vida. Este jovem taciturno e que padecia do «mal de siècle», um melancólico que dizia, aos dezoito anos, «sentir que tudo estava acabado para ele», padecia de uma ferida existencial secreta, e que o fazia sofrer de vertigens e de cefaleias terríveis. Após a adolescência e a vagabundagem pela Europa das famílias aristocráticas ligadas ao Império, a mãe tentou convencê-lo, em vão, a integrar a armada do Conde d’Artois. Tendo conhecido as mais ricas herdeiras francesas, casa finalmente, em 1821, com uma jovem, Léontine de Saint-Simon de Courtomer, de uma família antiga e rica, e tem um ano de felicidade tranquila, até ao nascimento do seu filho Enguerrand de Custine, em junho de 1822. Porém, logo a seguir ao nascimento da criança e durante esse verão foge durante os meses de julho e agosto com aquele que será o seu amante fiel, ao longo de toda a sua vida: Édouard de Saint-Barbe. Em julho de 1823 morre a sua jovem esposa Léontine, com vinte e um anos, com uma angina de peito.
Porém, a desonra e a prisão vieram em outubro de 1824, quando toda a cidade de Paris soube, através dos seus jornais, que o Senhor Marquês de Custine tinha sido encontrado meio nu e violentamente espancado pelos camaradas de regimento de um soldado com quem havia tido um encontro amoroso, tendo sido condenado por tal facto, durante o ministério conservador do impopular Joseph de Villèle.
Em 1825, Custine fecha-se no castelo de Fervaques com a sua mãe, o seu filho e Sainte-Barbe. No início de 1826, morre o seu filho com quatro anos de idade, com uma meningite, e no mês de julho do mesmo ano perde a sua amada mãe, que tinha sido uma figura central na sua vida. Viaja durante o ano de 1927 com Saint-Barbe, percorrendo a Itália e, em 1928, para fugir de Fervaques, junta-se a Saint-Barbe em Inglaterra. Durante esses anos faz várias viagens pela Europa e estreita relações com Stendhal. É em 1831 que vende finalmente Fervaques e se muda para Paris, onde frequenta o meio literário. Em 1832 instala-se na Rue de Rochefoucauld e compra uma propriedade na floresta de Montmorency.
Tendo passado por humilhações e sofrimentos atrozes, Custine não suporta a hipocrisia e o conformismo da sua casta, cuja dor o preparou para um desprendimento que aqui se nota, uma melancolia que encontra nas suas viagens e descobertas o seu consolo, sempre com uma curiosidade insaciável, com uma predisposição para o comentário subtil e irónico, uma extraordinária capacidade para se deter nos pormenores e descrevê-los com uma fidelidade notável. Antes de A Rússia em 1839 escreveu romances que não tiveram nem o êxito nem o reconhecimento dos seus pares e da crítica. Nunca conseguiu, com essas obras, Aloys ou le réligieux du Mont-Saint-Bernard (1827), Le Monde comme il est (1835), Ethel (1835), Romuald ou la Vocation (1848), em quatro volumes. E, se bem que Victor Hugo, George Sand, Balzac, Stendhal, Gautier, Lamartine e Baudelaire frequentassem assiduamente as festas em sua casa, na Rue de Rochefoucauld e também no pavilhão de Saint-Gratien, em estilo florentino, Custine nunca conseguiu deles senão cumprimentos em privado, o que o entristecia, como o revelou à sua amiga Sophie Gay, exprimindo o vão desejo de ser aceite entre os seus pares (Nora, 1975, p. 10). Apenas Charles Baudelaire lhe rendeu uma homenagem póstuma.
Sombrio destino, o de Custine, o de um homem votado ao exílio, sob vários pontos de vista. Não apenas o literário, já que nunca foi reconhecido, mas também social, em virtude da sua condição de homossexual, à época condenável, como o mostra o episódio da sua prisão. Para sabermos quem era Custine, é preciso lermos as Memórias do seu tempo, que dão conta das reacções que o escritor provocava. O tímido Custine é comparado, por Pierre Nora, à figura proustiana do Barão de Charlus (inspirado na figura do célebre dandy Robert de Montesquiou), mas nos seus «maus momentos», aludindo Nora certamente ao lado saturnino de Custine, alguém que teria dado tudo pela frequência do salão da Madame Récamier (Nora, 1975, p. 11), onde se reuniam, à época, as maiores celebridades, não apenas da literatura, mas também das artes e da política.
A obra aqui traduzida foi um verdadeiro sucesso de vendas, desde a sua saída em França e não apenas. Em apenas três anos o livro teve três edições e, na Bélgica, foram publicadas quatro edições piratas, ainda antes de sair a segunda edição em França. Foi traduzida para inglês, alemão e sueco e crê-se que, em menos de dez anos, tenham saído 200000 exemplares. Se bem que a edição integral da obra compreenda quatro volumes de quatrocentas páginas cada uma, constituídas por 36 cartas, a escolha que aqui fizemos; a da própria edição que foi revista por Custine, com a data de 1855, com a data de 1855, editada pela Livraria Amyot; representa apenas uma parte da totalidade da obra. Seria impensável uma tradução completa da obra, que se perde, muitas vezes, em detalhes que teriam pouco interesse para o leitor, pois seriam repetitivas e digressivas. Os cortes feitos respeitam muitas vezes a passagens inteiras, como as cartas II e III, que foram dedicadas às lembranças da sua família, a história de Thelenef (carta XVIII), a segunda metade da carta XXII e a primeira metade da carta XXIII, a carta XXIX sobre Moscovo e as cartas XXX à XXXVI sobre a viagem de Iaroslav e Nijni-Novgorod. Há passagens que são repetitivas e outras que são comparativas com outros países europeus. Todas estas passagens estão assinaladas por reticências.
No entanto, se o livro foi um sucesso de vendas e a recepção do leitor foi entusiástica, a imprensa foi mais lenta a reagir que o próprio público. Só seis meses depois as críticas desfavoráveis apareceram. Dois artigos importantes podem aqui destacar-se pela sua severidade: um na La Presse e o outro na La Revue de Paris. É bem possível que por detrás destas críticas estivessem «ordens russas», mas não é possível prová-lo. No entanto, há razões fortes e demasiadas coincidências nestes ataques da crítica para que se pense que elas não tenham sido condicionadas. E os ataques dos russos, os boicotes, surgiram de todos os lados, a par de um certo menosprezo dos seus pares. Se Herzen o leu com paixão, não deixando, todavia, de assinalar alguns erros e perspectivas um tanto superficiais, no seu diário, considerando que a base do juízo que se apresenta nas Cartas é sólida. O próprio imperador Nicolau I, cuja figura está sempre presente nesta obra, ferido no seu amor-próprio pelas observações de Custine, proíbe a obra e todos os comentários que dela se façam, ainda que não deixe de haver muito «ruído» como consequência, do qual nos dá conta o diplomata russo Balabine, no seu diário. Foi precisamente da Rússia que vieram a maior parte das objecções, as quais duraram um ano, pela parte de três homens suspeitos, todos ligados ao governo russo: Nicolas Grecht, jornalista e gramático, espião que o próprio Custine havia conhecido, Xavier Labinski, que publicava anonimamente, diplomata polaco e que trabalhava em Petersburgo no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e o próprio Tolstoï, que se dissimulava por detrás do pseudónimo Jacques Yakovlef e que lançou uma obra intitulada A Rússia em 1839 sonhada pelo Sr. De Custine[2]. As três acusações convergem para um mesmo ataque comum: o de ser uma obra mentirosa, caluniosa, eivada de erros e imprecisões, acusando o seu autor de injúria, face à hospitalidade e à confiança que lhe haviam dispensado. Isso é tanto mais interessante quanto podemos ler nas Cartas que a hospitalidade russa era, muitas vezes, forçada e nada tinha de verdadeira, pois era uma forma de o levarem ao silêncio. Porém, Custine não lhes fez a vontade, o que desencadeou nos seus detractores a ira e o ressentimento. O próprio Tolstoï não se coíbe de aludir aos bizarros costumes de Custine para o denegrir, referindo mesmo o sórdido episódio da sua homossexualidade que o levara à prisão, aos vinte e quatro anos.
No entanto, as críticas hostis à obra foram compensadas, mesmo para Custine, pelo elogio de críticos respeitáveis. Saint-Beuve escreveu, não em França, mas na Suíça, em La Revue Suisse (3 de janeiro de 1844), algumas linhas bastante abonatórias em relação à obra, salientando a profundeza daquela, a sagacidade do seu autor e a verdade das suas afirmações. Também no Journal des Débats, Saint-Marc Girardin, que era um profundo conhecedor das questões eslavas, escreveu favoravelmente sobre o livro. Todavia, foi em Inglaterra e na Alemanha que a obra colheu as críticas mais favoráveis. Quase sempre a crítica negativa incide sobre o desconhecimento de Custine em relação ao próprio país, uma vez que o próprio pouco viu, fora dos salões e da corte russa. E a impressão geral que se destaca, sob o pano de fundo da crítica, prende-se mais com os erros de detalhe e as imprecisões, as suas contradições (crítica, aliás, que o próprio Custine antecipa na sua obra).

Alexis de Tocqueville
Não se pode deixar de estabelecer comparações entre esta obra e a de Alexis de Tocqueville (1805-1859), aristocrata, pensador e político, que amava a democracia e a liberdade e que foi o autor da obra De la Démocratie en Amérique, cujo primeiro tomo foi publicado em 1835. O jovem Tocqueville procurava renovar aqui o célebre pensador Montesquieu[3] (1689-1755) e funda a ciência política moderna, o que será uma das fontes do próprio pensamento político de Custine. A leitura de Monstesquieu é visível na obra de Custine Espagne sous Ferdinand VII, publicado anteriormente, justamente em 1838. Encorajado por Balzac, que lhe escreve uma carta (Balzac, 2011), a incitá-lo a uma visita ao Norte, mais especificamente à Rússia.
É interessante notar que, enquanto Tocqueville se voltava para a América (esse laboratório político à época), procurando compreender os fundamentos da jovem democracia, Custine orientou o seu olhar para a Rússia e para o seu sistema autocrático. Tocqueville e Custine tinham em comum o mesmo tecido social; ambos aristocratas, tendo sofrido as consequências da queda do Antigo Regime e do Terror, sob o governo de Robespierre; e encontravam-se ligados aos valores do Antigo Regime, vendo com pessimismo a instalação da monarquia burguesa e o advento de uma nova organização social.
Tal como Tocqueville, também Custine não via senão na religião a razão de ser da ordem social. Tanto a Revolução, quanto o progresso da igualdade social são o seu problema existencial. E após as suas viagens, a lugares totalmente diferentes, chegam a conclusões idênticas. Para Tocqueville, «os princípios sobre os quais as constituições americanas repousam, os princípios de ordem, de ponderação dos poderes, de verdadeira liberdade, de respeito sincero e profundo do direito são indispensáveis para todas as repúblicas…dependendo do que tivermos, a liberdade democrática ou a tirania democrática, o destino do mundo será diferente e pode-se dizer que ele depende hoje de nós que a República acabe por ser estabelecida ou abolida em todo o lado.» (Tocqueville, 2010, p. 160). Para Custine: «Tendo partido de França, assustado pelo abuso de uma liberdade mentirosa, volto ao meu país persuadido de que, se o governo representativo não é o mais moral, falando logicamente; quando se vê que, de um lado, ele preserva os povos da sua licença democrática, e, do outro, dos abusos mais gritantes do despotismo (…) perguntamo-nos se não é preciso impor o silêncio às suas antipatias e sofrermos, sem nos queixarmos, uma necessidade política que, depois de tudo, traz às nações preparadas para ela mais bem que mal.» (Nora, 1975, pp. 16, 17). Ainda que inspirado em Tocqueville, o alvo de Custine consistia na caracterização, através da observação e análise da autocracia russa dos czares, de todas as formas de ditadura bolchevique. Isso valeu-lhe um sucesso extraordinário junto do público liberal e burguês, pois, em menos de três anos foram vendidos 200000 exemplares, transformando-se num caso ímpar.
Custine permanecerá apenas três meses na Rússia, mas o momento em que empreendeu a viagem foi importante, pois a imagem da Rússia em França, a partir de 1830, teve uma viragem súbita. Nunca as relações entre os dois países tinham sido tão estreitas como nos anos da Restauração, após a chegada ao poder de Carlos X[4] (em França) e de Nicolau I (1825). Se o povo francês vivia ainda as más recordações da campanha na Rússia e da ocupação russa de Paris, a burguesia liberal, no entanto, estava demasiado ocupada nas suas lutas intestinas, no interior do país, para conceder outra atenção à Rússia que não fosse a da hostilidade. Apenas os simpatizantes do Antigo Regime e alguns viajantes liberais, tomando como exemplo, Ancelot[5] ou de J.B. May[6] ou, ainda, Héreau, um dos poucos especialistas que conhecia a língua russa, o que não era o caso de Custine, o qual ironizava sobre as conversas dos mundanos que acreditavam que a Rússia se limitava a São Petersburgo e a Moscovo. No entanto, foi Schnitzler, autor de Estatística geral do Império Russo (1829), que forneceu uma base sólida de documentação a Custine.
Contudo, a França da Restauração vivia uma boa relação com o representante maior da Santa Aliança, que encarnava o próprio princípio da legitimidade, isto é, a Rússia, que era um império recentemente europeizado e solidamente instalado num sistema social fundado sobre a escravatura e uma nobreza do século XVIII, desempenhando o papel de uma verdadeira guardiã da ordem, recurso que era usado contra todas as evoluções liberais e excessos revolucionários. A Rússia acolhia engenheiros, comerciantes, modistas, professores, ambiente que é, de resto, visível nas Cartas de Custine, mão-de-obra de que a alta nobreza russa usufruía. Porém, os ímpetos revolucionários franceses não eram bem vistos por um sistema que temia o contágio político e social e cujo povo vivia vergado sob o despotismo dos czares. O ponto de vista de Custine, naturalmente avesso aos «excessos revolucionários», procurou descobrir os princípios de aplicação do absolutismo russo, mas cedo compreendeu os grandes males de que padecia a Rússia e a razão de ser da sua ineficácia. O analfabetismo generalizado, a corrupção em todos os campos administrativos, a brutalidade da tortura e da censura confirmaram-se na sua viagem à Rússia, a começar logo pela sua passagem inicial pela alfândega, ao entrar em São Petersburgo e os procedimentos morosos e inúteis por que teve de passar. Cedo, Custine confirmará o que Joseph de Maistre afirmava na sua obra Quatro Capítulos inéditos sobre a Rússia (1829): «A escravatura existe na Rússia porque ela é hoje necessária e o imperador não pode reinar sem escravatura.» (Nora, 1975, p. 19). Porém, o crescimento e o poder da Rússia era evidente, ainda que o Marquês, em muitas das suas cartas, pressinta já a raiva latente do povo escravizado, vaticinando a revolta iminente. Se isso não era antecipável para os russos, era-o certamente para alguém como ele, que sofrera os excessos da revolução francesa e cuja educação e formação lhe permitiam identificar os sinais dessa violência subterrânea. Não será muito mais tarde, em 1861, que eclodirá a revolução dos Servos.
Apesar do crescimento rápido da Rússia, não apenas dos seus habitantes, mas também da sua riqueza e conhecimento, permanecia a vontade de uma aliança com aquela potência por parte da França, pela qual Chateaubriand tinha batalhado, e que permanecia o grande objectivo do reino dos Bourbon. E ela estava prestes a acontecer, encorajada pelo próprio Czar, quando dois factos marcantes vieram interromper o curso dos acontecimentos: a Revolução de Julho de 1830[7] em Paris e a insurreição de Varsóvia em dezembro. Estes acontecimentos suspenderam o idílio entre a França e a Rússia, pois o czar Nicolau I não queria reconhecer Louis-Philippe I, após a abdicação forçada de Carlos X, na sequência da revolução de julho de 1830. Durante esses três dias, Paris viveu em clima de guerra civil durante esses três dias do final do mês de julho. O próprio Louis-Philipe I, uma vez chegado ao poder e substituído Carlos X, deu o seu apoio à Revolução da Bélgica, apoiado pelas aspirações da burguesia e do liberalismo, que incitavam à revolução pela Europa fora. Os russos viam com inquietação esse facto e procuravam evitar a chegada dos focos revolucionários que grassavam na Bélgica (a revolução francesa alastrou-se à Europa) por contágio e que fez com que a Bélgica se libertasse da Holanda. Tanto a França quanto a Inglaterra apoiaram a revolução e impediram a intervenção da Santa Aliança[8]. Porém, a insurreição em Varsóvia no mês de dezembro desse mesmo ano não teve um desfecho feliz. As tropas polacas foram impiedosamente esmagadas pelas tropas do Czar Nicolau I. Nada conseguiu salvar a insurreição polaca, não obstante a solidariedade que ligava os franceses à Polónia, selada por uma amizade secular. Em França, o apoio aos polacos levou a uma verdadeira campanha contra os russos e os liberais franceses apropriaram-se da causa polaca. Era também um caso de unidade religiosa, pois a Polónia era católica e os próprios padres participaram activamente na insurreição.
A crise polaca de 1831 fez com que a opinião francesa tivesse de escolher entre a Polónia e a Rússia como entre dois sistemas de valores que se excluíam entre si e fossem incompatíveis. O escândalo político ganhou proporções inéditas, desdobrando-se no apoio aos exilados e a frustração da burguesia encontrava aqui o seu clímax, como a desilusão do seu sonho revolucionário e libertador. Em Paris não se falava de outra coisa, não se ouvia mais nada do que A Varsoviana do compositor Casimir Delavigne, nas ruas e nos cafés parisienses. Uma sala entusiástica ouvia o primeiro concerto de Chopin e chorava, aos acordes da Polonaise de Chopin. Schumann apoiava-o e George Sand comparava o poeta romântico Mickiewicz a Goethe e a Byron (Sand, 1839). Victor Hugo, a quem reprovaram o seu silêncio, escreveu sobre a Polónia em Les Chants du Crépuscule (Hugo, 2002, pp. 847, 848.).
Durante muito tempo, a França, que desconhecia os problemas eslavos, não tinha outra notícia da Rússia senão através dos que haviam emigrado. Talleyrand, que ocupou o cargo de embaixador em Londres (1830-1834) e que muito trabalhou para a formação da aliança entre a França e o Reino Unido, tendo ainda participado na criação do reino da Bélgica e na assinatura da aliança entre França, Reino Unido, Espanha e Portugal (em 1834), disse, num discurso proferido em 4 de Janeiro de 1838, pouco antes da viagem de Custine, que «seriam precisos muitos anos para que a Rússia esquecesse a adesão moral que a França havia dado aos acontecimentos da Polónia.» (Nora, 1975, p. 23).
Havia ainda um outro motivo forte para que Custine empreendesse a sua viagem em 1839, segundo os seus biógrafos, um motivo que se dava pelo nome de Ignace Gurowski. Era um jovem refugiado polaco, de grande beleza e encanto sedutor que fazia as delícias de uma sociedade frívola e que Custine gostava de exibir. O Marquês tinha-o instalado em sua casa, em 1835, e a sua chegada trouxe a Custine uma nova juventude. Gurowski veio juntar-se a Custine a Edouard Saint-Barbe na casa da Rue da La Rochefoucauld, o que mostra o lado de uma sociedade cujas ideias não eram tão estreitas quanto podemos hoje pensar.

Ignace Gurowski
Para defender a causa do jovem refugiado junto do Czar russo, Custine partiu para a Rússia durante o Verão de 1839, onde esteve durante os meses de junho, julho e agosto. Nessa altura já tinham passado dez anos sobre toda a diabolização da Rússia, a qual também era fabricada por uma emigração polaca que estava omnipresente na sociedade francesa. E o facto de ser filho e neto de figuras ligadas ao Antigo Regime facilitou a entrada de Custine na Rússia e a obtenção de um passaporte, pois os russos acreditavam que poderiam contar com ele para uma actividade de contra-propaganda. Nesse sentido, eles próprios até o encorajaram a visitar a Rússia.
Entretanto, entre 1840 e 1841, o belo e fogoso Ignace Gurowski seduz a Infanta Isabelle de Espanha e casar-se-á secretamente com ela, contra a vontade da sua família e para grande escândalo da sociedade. O facto deixou Custine destroçado e este parte para Itália, após o casamento de Gurowski, em 1842. É nesse clima de desgosto e de profunda desilusão que finalmente se decide e escreve A Rússia em 1839, tendo sido a obra publicada em 1843, com um êxito estrondoso e inesperado.
Independentemente das suas falhas, dos seus juízos morais que, muitas vezes, surpreendem pela sua ingenuidade e candura num homem mundano, das suas inexactidões históricas e as suas digressões de salão, Custine foi também condicionado pelos seus informadores[9], os quais provavelmente lhe terão dado perspectivas parciais. Como era profundamente católico, os seus ataques também se dirigiam à Igreja Ortodoxa, que ele culpava por considerar responsável por enganar a população. A sua imagem da Rússia deve-a Custine a Alexandre Tourgueniev, mesmo antes de passar a fronteira, enquanto o príncipe Kozlovski formou a opinião de Custine sobre o imperador Nicolau I e Viazemski a sua imagem da corte do imperador, em Petersburgo. Custine não viu a província nem o povo e a própria realidade com que se confrontou não lhe deu nada sobre a literatura, sobre Pouschkin (tendo conhecido a sua história através de Karamsin, o historiador russo), Lermontov e outros, nem nada sobre o pensamento eslavo, a sua fé e o seu misticismo. Por isso, a obra de Custine é parcial, mas, ainda assim, um livro excelente sobre a Rússia, o melhor de todos na óptica de George Kenan (Kenan, 1971). Esta é, ainda, a Rússia que Staline governou, segundo o autor. Onde nos deparamos com as punições que eram aplicadas a quem se atrevia a enfrentar o imperador, o destino dos que eram enviados para as minas dos Urais ou para as planícies geladas da Sibéria. Há algo de profético na obra de Custine e o seu leitor identificá-lo-á. Uma violência surda instalada no quotidiano russo, nas suas gentes e no seu povo, que esperam o momento da sua libertação. De 1839 à revolução de 1861 (a da emancipação dos servos) ainda vão alguns anos, mas o que significa isso na história milenar de um povo habituado à sua infame servidão? Custine dá-nos conta da eclosão de focos revolucionários, de motins que são esmagados pelo imperador Nicolau e das vítimas que são enviadas para os confins do império de forma impiedosa. A descrição dessa barbárie deixa-nos a nós, seus herdeiros e leitores, perceber a revolução que ali latejava e que parecia estar a irromper. Nesse sentido, Custine é um visionário, no sentido autêntico da palavra, no modo como, apesar do pouco tempo que passou na Rússia, pressentiu a chama revolucionária e vulcânica, os sinais de uma nova época prestes a chegar e onde haveriam de libertar-se todas as suas forças arcaicas e viscerais.
Custine sabia o que tinha visto, mas, mais do que isso, soubera interpretar e ler os sinais e era preciso coragem para assumir essa tarefa que tinha entre mãos, consciente do escândalo e da reprovação que, mais uma vez, iria enfrentar. A sua grandeza foi essa, precisamente: a da coragem com que enfrentou todas as críticas que provinham das mais altas instâncias políticas, não apenas russas, mas também do seu próprio país, que via no seu livro um pretexto para um incidente diplomático. Por isso ele disse: «Hesitei três anos em publicar a minha viagem…Se eu me resignasse à injustiça, eu não teria publicado estas cartas. É uma pena para mim, mas eu prefiro o desgosto ao remorso…». A verdade histórica e a verdade jornalística impuseram-se, em nome dessa verdade que Custine reclama na sua obra, com a candura de alguém que passou toda a sua vida às avessas com o mundo, na maior parte do tempo alheio à moral burguesa. Restou-lhe, no seu exílio, esse gesto grandioso que muitos não lhe perdoaram, mas que o tempo e a história acolheram. Talvez a justiça nunca pertença ao presente. Mas quase sempre ela chega, mesmo que tardiamente.
Obras Citadas
Balzac, H. d. (2011). Correspondance (Vol. III). Paris: Gallimard.
Custine. (1994). L’Espagne sous Ferdinand VII. Paris: Julliard.
Hugo, V. (2002). Oeuvres Poétiques. Paris: Livre de Poche.
Kenan, G. F. (1971). The Marquis de Custine and his Russia in 1839. Princeton : University of Princeton.
Montesquieu. (2013). De l’espirit des lois. Paris: Flammarion.
Nora, P. (1975). Préface. Em Custine, Lettres de Russie (pp. 7-29). Paris: Gallimard.
Sand, G. (1839). Faust, Manfred, Konrad. La Revue des Deux Mondes.
Tocqueville, A. d. (2010). De la Démocratie en Amerique. Paris: Flammarion.
[1] Herzen partilhava os ideais de Proudhon e conheceu-o pessoalmente em Paris, onde viveu alguns anos, exilado, antes de voltar à Rússia e protagonizar a revolta de 1861. Herzen instalou-se em Paris a partir de 1847 e assistiu à revolução de 1848 nessa cidade.
[2] «La Russie en 1839 revée par M. de Custine».
[3] Montesquieu foi educado no espírito iluminista e criticou ferozmente a monarquia absolutista. Com a sua obra Cartas Persas, publicada em 1721, o autor usa a ironia para atacar tudo aquilo que lhe desagradava na sociedade francesa.
[4] Este será forçado a abdicar em 1830.
[5] Autor de Six Mois en Russie (1827).
[6] Autor de Saint-Petersbourg et la Russie de 1829.
[7] Referimo-nos aqui aos três dias que também são conhecidos pelas Três Gloriosas (Les Tois Glorieuses), que constitui a designação dada aos acontecimentos dos dias 27, 28 e 29 de julho de 1830, durante os quais o povo de Paris e as sociedades secretas republicanas, liderados pela burguesia liberal, realizaram uma série de insurreições contra Carlos X, que culminaram com a sua abdicação e, consequentemente, ditaram o fim do período da Restauração Francesa. Este movimento alastrou-se por toda a Europa. O rei, o último da Casa de Bourbon, foi obrigado a partir para o exílio no início do mês de agosto desse ano. Victor Hugo dá-nos conta desse ambiente na sua obra-prima Os Miseráveis.
[8] Aliança que era integrada pela Rússia, Áustria e Prússia e que procurava combater a revolução liberal.
[9] De acordo com vários estudiosos da obra, os informadores teriam sido o príncipe Alexandre Ivanovitch Tourgeniev (tio do romancista), com o qual se terá encontrado secretamente em Kissingen, antes da sua chegada à Rússia, Varnhagen von Ense e a sua esposa judia Rahel, o príncipe Pierre Borissovitch Kozlovski, que ele designa por «K***», o príncipe Andreïevitch Viazemski, poeta e crítico, Pierre Yakovlevitch Tchaadaïev (filósofo que teve um papel importante na formação das ideias de Custine), «O Círculo dos dezasseis» (sociedade secreta constituída em 1839).