«A Vocação Suspendida», de Lauren Mendinueta

Poeta, tradutora, professora universitária, Lauren Mendinueta é um caso singular da poesia colombiana. Radicada desde 2007 em Portugal, começou a publicar muito jovem, mais concretamente em 1998, com Carta desde la aldea, em 1998. Desde aí já publicou 11 livros de poesia — na Colômbia, México, Espanha, Perú e Portugal — e várias obras como antologiadora e tradutora. É autora da única antologia de poesia colombiana publicada em Portugal, com tradução de Nuno Júdice, e de outras sete antologias de autores portugueses e colombianos publicadas em vários países. Nos últimos quinze anos tem traduzido para castelhano vários autores, como Pessoa, Nuno Júdice, Vasco Graça Moura, Ana Luísa Amaral, José Luís Peixoto, António Carlos Cortez, entre outros. Em Lisboa dedica-se à intensa divulgação da poesia latino-americana e da poesia portuguesa em Espanha e na América Latina.

É considerada uma das poetas mais importantes da sua geração na América Hispânica. Recebeu quatro prémios nacionais de poesia no seu país e o Prémio Nacional de Ensaio e Crítica de Arte do Ministério de Cultura da Colômbia. Ganhou em Espanha os prémios internacionais Martín García Ramos por A Vocação Suspendida e o Prémio César Símon por Do Tempo, um passo.

Um dos aspectos que muito enriquece este livro é a entrevista feita à poeta por António Carlos Cortez. Nesta obra publicada pela editora Exclamação, inaugurando uma colecção de poesia da América Latina, não só temos o prólogo do poeta Jon Juaristi, como o posfácio de António Carlos Cortez (que é também o tradutor) e, na contracapa um texto de Nuno Júdice, elementos que dão a ver uma série de coordenadas que podem servir de guia para a sua leitura.

Em primeiro lugar, um acontecimento dramático da sua existência, o assassinato do seu avô, que faz aparecer a poesia como «tábua de salvação pessoal». Elegendo o poema como aquilo que cura, pharmacon, Lauren Mendinueta faz da poesia esse canto que salva. Por outro lado, há uma dimensão que importa referir, é a sua defesa das vozes femininas que a autora apregoa frequentemente em festivais e nas suas aparições públicas.

A Vocação Suspendida é constituída por cinco secções, que compõem um livro muito equilibrado e coeso. Apesar de ser escrito numa linguagem coloquial, não é uma obra fácil, pois contém uma dimensão profunda, que contraria a linguagem e o universo prosaico que contamina uma boa parte da nossa poesia. Por detrás do olhar poético desta autora assoma sempre uma dimensão reflexiva e referencial, que passa por um conhecimento da tradição poética. E isso é tanto mais espantoso quando se sabe que a maior parte destes poemas foi escrito quando a autora era ainda muito jovem. Ressuma nesta obra uma grande maturidade e uma maestria poética pouco coincidente com a sua juventude.

Sobre a sua própria poética, diz o sujeito lírico, na página 62, dedicado a Silvia Favaretto:

Que meus poemas sejam ligeiros

como folhas vivas

que desenham formas ténues

sobre muros translúcidos

é um desejo estúpido.

Espero, melhor,

que sejam tão sólidos

como o arco de meus pés

nos sombrios caminhos da terra.

A recusa da facilidade e da ligeireza e um rigor oficinal que acompanha sempre esta poesia, é uma das suas dimensões mais interessantes. Apesar da aparente leveza, há uma dimensão metafísica e reflexiva, que torna os seus poemas «sólidos». Ressalto ainda a originalidade da voz da autora, que a transforma numa voz autónoma e pessoal da poesia latino-americana.

Discordo de Jon Juaristi quando fala da «economia da metáfora na poesia de Lauren», no prólogo da obra (p. 13). Sem dúvida que ela foge à efusão e à proliferação metafórica do barroco, mas, nela, o poder da metáfora é irradiante e transfigurador. Como nos diz António Carlos Cortez, no posfácio do livro, «perante o mundo dos objectos e dos fenómenos, a metáfora devém processo de auto-conhecimento e de reconhecimento dos outros». (p. 119).

A poesia de LM é muito centrada na questão do tempo, nas suas várias modalidades, e da memória, desse tempo que nos foge, mas que também não se deixa aprisionar pela nostalgia. Toda a obra é percorrida pela ideia da passagem do tempo e de uma memória que pretende salvar o efémero e reactualizar o passado no presente. Entre a sua infância e os dias do presente, LM passa pelos lugares e pelas experiências e questiona-as sempre.

Voz íntima, como diz no poema da página 23, diz: «Não sei para onde dirigir-me, para onde encaminhar meu desconcerto,/para encontrar resposta ao meu afã de existir.». Desta espécie de inquietação e desassossego se faz a matriz da sua poesia, sempre em busca de sentido através da linguagem e do poema. Existe, nesta poética, um recorrência à ideia de reflexividade, metaforizada pelos espelhos e pela fotografia, pelas águas, em que o sujeito se revê, procurando o reconhecimento deste «eu confessional».

No poema «Epitáfio dos dias habituais» (p. 58) , interroga-se sobre a sua vocação:

Pergunto-me qual é a defesa desta teimosa paixão,

por que não fui costureira, vendedora de cigarros, monja ou actriz.

Sobrevivi por hábito como as aves do céu,

nunca estimei a moda tanto como os nenúfares em seu limbo,

visitei catedrais e amei a imobilidade dos cemitérios.

Magnífico deveria ter sido eleger outras tarefas

e não esta vocação suspendida

a que a mente, a mão do ofício, me arrastou.

Este poema, pertencente à secção «Vocação Suspendida», dá-nos conta dessa hesitação de que a própria poeta nos fala na sua entrevista. São, como ela o diz na página 107, «perguntas retóricas, porque na escrita encontrei a minha realização pessoal como ser humano. Elegi ser fiel à minha vocação, apesar das dificuldades que implica ser poeta, porque a poesia deu-me uma voz». Com radicalidade, a poeta escolheu «habitar poeticamente sobre a terra», como o diz ACC, citando Hölderlin, na página 113. Entre as hipotéticas vocações de actriz e de monja, LM assume esse compromisso ético com a escrita e que é também a sua paixão. Para LM, «o poeta é uma espécie de medium em relação ao poema» (p. 108) e a tarefa da poesia, do seu ponto de vista, «é trabalhar com a linguagem, com honestidade, para que me seja concedido o dom da escrita» (Idem).

Uma das dimensões mais interessantes desta poética é a sua intertextualidade e a sua referencialidade. Leitora ávida, LM tem vários poemas dedicados a mulheres poetas — e também a Balthus e a José Luís Rojas — e estabelece diálogos com a sua poesia. Por exemplo, no poema «Eu, Marina Tsvietáieva» (p. 61), um dos mais tocantes em toda a obra, evoca a vida trágica da poeta, mas sem cair no sentimentalismo, através de um sábio recurso à metáfora. Há ainda a alusão ao rouxinol de Keats, à cotovia de Shakespeare e ao corvo de Poe, no poema «Uma tarefa árdua» (p. 60).

A sua voz poética, serena e analítica, é uma das mais fortes da sua geração e devemos saudar a sua chegada a Portugal, pela mão da editora Exclamação. Temos aqui uma escrita que nunca se afasta de uma relação íntima com o mundo concreto e a sua maestria conduz-nos os passos através de uma paisagem bela e melancólica, que a autora nos dá a ver.

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