Texto de apresentação da obra poética de Adalberto Alves, aquando do lançamento do livro Adalberto Alves: 40 anos de vida literária.
Começo por saudar Adalberto Alves, grande figura da nossa cultura e a quem devemos tanto. Queria saudar também o público aqui presente (sendo que muitos vieram de longe para aqui estar) e Fabrizio Boscaglia, meu colega no carinho com que tratámos este livro que agora é publicado, abordando os quarenta anos de vida literária e de investigador de Adalberto Alves.
Seria inapropriado, nesta apresentação, demorar-me extensivamente sobre as duas obras últimas que AA deu à estampa, nomeadamente «Uma Flor no Silêncio» e «Infinitude». Antes tecerei um panorama geral da poesia de AA, incluindo estes dois livros na vastidão da sua obra, que começou em 1979 com «Uma Obscura Visão». Devo dizer que sobre estas duas obras já escreveram tão justamente Maria Azenha e Ronaldo Cagiano, respectivamente. Eu pouco teria a acrescentar a estes prefácios, além do meu cunho pessoal.
Como é sabido pelas pessoas que aqui se encontram, além da poesia e do ensaio, AA tem uma carreira internacionalmente reconhecida, dedicada à tradução e ao estudo da tradição poética árabe, sobretudo no que respeita ao período das taifas na Andalusia, ao longo do século XI. Assim, podemos afirmar que é, em Portugal, aquele que melhor conhece esse legado, que serviu de matriz à nossa cultura. As traduções (excelentes) de AA da poesia de autores como Ibn Ammar e Al-Mut’amid foram marcantes na década de 90 e deram a conhecer esse período esplendoroso da cultura andaluza, sobre a qual existia muito pouca informação, se compararmos com a vizinha Espanha.
Esta pujança das formas poéticas, intrínseca à poesia árabe, foi o melhor berço, como já o disse anteriormente, o mais feliz que AA pôde encontrar, no sentido em que lhe oferece um manancial de formas e temas poéticos de primeira água, onde também se encontra presente uma liberdade criativa da linguagem. E podemos dizer que, embora não seja o único lastro da poética de AA, não deixa de ser um veio poético a considerar. A intimidade com a poesia árabe e também com a poesia persa, em particular com a obra de Rumi, conferiu à sua poética um fôlego lírico pouco usual na poesia contemporânea actual. Se a obra poética de AA tem uma vertente lírica, ela não o é menos metafísica, outra das linhas poéticas «esquecidas» em Portugal, à excepção de pouquíssimos poetas portugueses. Deveríamos por isso, estudar a sua poesia como uma voz única e representativa de uma tradição que já foi forte na poesia portuguesa e que hoje está em declínio, pois esta encontra-se muito mais voltada para um imaginário do quotidiano, que abafa o lirismo e a tradição metafísica.
Mais uma vez, tanto em «Uma Flor no Silêncio», como em «Infinitude», reencontramos um sujeito poético cuja principal característica é uma voz caudalosa e inspirada. Por outro lado, os temas poéticos são também ecléticos, onde podemos encontrar a raiz do pensamento do poeta sobre os temas mais variados. Um pessimismo sobre a actualidade serve-lhe de chapéu, nomeadamente sobre a vida actual e nalguns temas alusivos à situação política e europeia. A voz lírica e metafísica, questionando temas tão humanos como a beleza, a morte, entre outros, entrelaça-se com o questionamento filosófico, que assoma sem pretensiosismo, mas de forma natural. Se «Uma Flor no Silêncio», enquanto título do seu poemário, nos remete para uma dimensão mais onírica do sujeito lírico, de resto anunciada nas epígrafes com que abre o livro, «Infinitude», sem se desviar do misticismo inerente, é um livro mais desencantado com a realidade, mas sempre com a direcção apontada para uma dimensão metafísica, como o próprio título indica.
Como Ronaldo Cagiano o diz no prefácio desta obra, AA «não se reserva nenhum pedestal, antes se contrapõe, vigilante, aos ruídos e aos holofotes da notoriedade, à soberba e ao desvario que tanto contaminam a vida e até mesmo a Literatura». Esta exegese do quotidiano e, ao mesmo tempo, da transcendência, nas palavras de Cagiano, são, a meu ver, os dois veios mais interessantes da obra, que convoca todas as dimensões da experiência humana para sobre elas reflectir poeticamente. Fá-lo, no entanto, fazendo uso do seu profundo conhecimento da poesia e do pensamento universal, transcendendo assim a tradição poética portuguesa.
Como Paul Valéry o afirmou um dia, «o poema é uma hesitação entre o som e o sentido». Também em AA encontramos essa profunda urdidura que transparece na musicalidade da sua poesia. É uma dimensão que se apresenta na forma «inspirada» e, ao mesmo tempo, laboriosa da sua construção poética. Cultor exímio das formas clássicas da poesia, AA conduz-nos sempre através dessa musicalidade secreta, deixando-nos a nós, leitores, deleitados pela sua leitura.
A procura do conhecimento, a descoberta como apanágio da escrita é um privilégio que cabe à grande poesia desde tempos imemoriais. O que nos encanta num poema da Rumi, para além da sua beleza intrínseca, é o modo como o poeta trabalha a linguagem na procura de uma dimensão mágica e divina. O Amor, na poesia de Rumi, é o viés mais importante e alude à experiência de harmonia com o divino. O amor, não apenas terreno ou carnal, mas antes a grande força cósmica em torno da qual gravita todo o universo. E a poesia é a porta de entrada para esse universo, como o mostrou Rumi no «Poema dos Átomos». Também AA o diz na sua obra «Infinitude», de uma outra maneira: «a chave-mestra do amor é a poesia.» A presença do amor na obra de AA é omnipresente e, mais uma vez, em «Infinitude» ela ressalta, como elemento fusional de toda a experiência humana. O Amor é, ao mesmo tempo, profano e terreno, mas também sagrado e universal. Quando AA nos fala dele, isso diz respeito a algo intocável e eterno, infinito, para sermos mais precisos, incorruptível pelo tempo, transcendental e divino. Porém, ele encontra-se no coração de cada um, o que nos dá a medida desse gesto de procura de fusão com o divino.
Já anteriormente tinha referido a presença do estoicismo, num texto de apresentação de A Urgência do impossível, na poesia de AA. Onde se verifica ela? Sobretudo no treino da despossessão e de uma indiferença perante os bens, ao longo da vida, mas também de uma distanciação crítica relativamente aos sentimentos. Tanto «A Flor do Silêncio» como «Infinitude» patenteiam essa atitude de renúncia, que nos conduz à sabedoria, pela supressão do sofrimento que o apego acarreta. Apresenta-se aí a convicção de que aquilo que temos, na brevidade da vida, pode não ser possuído ou alcançado, isto é, a ideia de que tudo não passa de ilusão, no que respeita aos bens materiais. Há uma sapiência que se perfila neste olhar poético. Assume o sujeito lírico uma dimensão oracular e misteriosa, muito além do logos e da razão, devedora ainda de um desbragamento dos sentidos. Esse aspecto reverte também numa torrencialidade da linguagem que alguns poemas, sobretudo os poemas em prosa, apresentam.
AA é um homem de múltiplos talentos. A sua erudição é um lastro fundamental da filosofia. Não apenas a filosofia, o misticismo, a literatura e a história alimentam a sua poética, mas também a ciência ali se apresenta. Veja-se este poema:
«ah, Ibn ‘Arabî! Ah, Fibonacci!
sois aqueles que bem vistes
que, entre a parte e o todo,
não há senão espiral e sequência
num luxo de perfeita completude…
no campo da inigualável coerência
esplendem energia, amor, infinitude. »
Tudo converge para a infinitude no nosso universo. A ciência di-lo, mas a poesia de AA canta a infinitude que subjaz a toda a nossa experiência. O destino humano ganha o seu sentido na transcendência da infinitude. Porque a experiência da finitude é a da pobreza humana, da sua fragilidade. E o poeta contrapõe as duas dimensões, exaltando a dimensão da transcendência e da eternidade, da procura do conhecimento. É sem dúvida este o farol da sua poética, a luz irradiante da sua linguagem.
Como o ressalta Ronaldo Cagiano no prefácio ao livro «Infinitude», o olhar do poeta reflecte, não apenas sobre o conhecimento e a tradição, numa exemplar erudição, mas também sobre a actualidade, nomeadamente no que diz respeito à vida quotidiana, imersa no ruído e nas fantasmagorias do presente. Podemos afirmar que a poética de AA releva de um compromisso ético com o seu tempo, numa postura crítica face à nossa alienação. Se à pergunta holderliniana «Para que servem os poetas em tempo de indigência?» AA tivesse de responder, ele certamente poria a tónica na advertência, no aguilhão do despertar dessas ilusões com as quais nos confrontamos, para acentuar a dimensão espiritual e metafísica do homem. Neste sentido, há um humanismo que ressuma da sua obra, herdeiro das grandes tradições humanistas do pensamento.
Confrontamo-nos com uma fissura na dobra da linguagem, havendo um Ser que se afirma como uma pura presença, à maneira do Ser de Rumi, mas essa afirmação também se funda numa ideia heideggeriana de Ser: como Dasein, ou Ser aí. Trata-se assim de uma incandescência que ilumina a sua poética, ou melhor, do seu carácter epifânico, que pertence a uma ordem de pura linguagem, onde o ser se faz presença, como uma luz inabalável. A poesia é, segundo essa ideia, e segundo o próprio AA, o lugar dessa presença, reflectindo o inabarcável, o inefável, que não se deixa prender nas malhas da escrita. A poesia, muitas vezes assumindo uma dimensão onírica em AA, é o símbolo que leva ao sonho, já que é impossível tocar o real. É impossível tocá-lo, mas não impossível sonhá-lo. Por outro lado, há ainda uma dimensão melancólica na poética de AA que se espelha no modo como o poeta pretende resgatar o real, numa espécie de limbo onde tudo se instala. É o lugar do insustentável em que o desejo não pode cumprir-se, de tão inesgotável que é, mas dele também não saberíamos abdicar, sob o risco permanente de lhe sucumbirmos, mas ainda assim enamorados pela sua luz.
MARCOS MENDES PONTEVEDRA
OBSERVEI, MUI ATENTO, UM MERGULHO LUMINOSO, CUIDADOSAMENTE DELICADO, ÀS POSSIBILIDADES DE ORGANIZAR REFINADAS PALAVRAS QUE DESCREVESSEM O NOVO TRABALHO POÉTICO DO AA. ACHEI MUITO INTERESSANTE, ATRATIVO, EXPLOSIVO, ALUSIVO, TOCANTE.
MMP
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Vitor Pimenta
sempre a escrever tao bem
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