Entre a poesia e a pintura: Ana Hatherly

Ana Hatherly (1929-2005) foi uma figura maior da cultura portuguesa contemporânea, enquanto poeta, artista plástica, ensaísta e professora. Tendo sido sócia co-fundadora do PEN Clube Português, foi posteriormente membro dos corpos gerentes do PEN até ao ano de 2009 e Presidente do Committee for Translation and Linguistic Rights of International PEN. Ana Hatherly também pertenceu à Direcção da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Nascida no Porto, no ano de 1929, teve um percurso versátil e a sua obra atravessa o cinema, as artes plásticas, a poesia e a prosa, cruzando e estabelecendo passagens entre as diversas expressões artísticas.

Licenciada em Filologia Germânica e doutorada em Estudos Hispânicos, a autora teve, ainda, formação em cinema (pela International London Film School) e música e tornou-se Professora Catedrática na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde foi co-fundadora do Instituto de Estudos Portugueses e dirigiu duas revistas: Claro-Escuro e Incidências. Antes disso, foi professora de Cinema no Conservatório Nacional e na escola AR.CO, em Lisboa. A sua obra cinematográfica encontra-se no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e no Arquivo da Cinemateca Portuguesa. Destaque-se ainda Revolução, Lisboa, de 1975, que foi exibido por altura dos 40 anos do 25 de Abril, no Centre Pompidou, em Paris, O que é a ciência? I e II, de 1976, e, de 1977, Rotura, Lisboa, Galeria Quadrum.

Ana Hatherly iniciou a carreira literária em 1958, tendo-se estreado com a recolha de poesia Um ritmo perdido. Em 1960 dá início à sua carreira de artista plástica, reconhecida nacional e internacionalmente. Em qualquer dos domínios literários, da poesia à prosa e ao ensaio, a sua obra é extensa, revelando uma personalidade inquieta e sempre em busca de novas formas e caminhos. O seu nome aparece, sobretudo, ligado à vanguarda da poesia e à poesia experimental (tendo sido autora do primeiro poema concreto em Portugal), durante as décadas de 60 e de 70. Ana Hatherly explorou as mais diversas potencialidades da mancha da escrita e da caligrafia, transformando a sua obra em poesia visual e destacando-se no panorama da vanguarda das artes e da poesia portuguesas. Segundo a própria, “a literatura de vanguarda, que surge na sociedade burguesa, é antiburguesa” e a sua atitude é claramente política, nesse sentido, como uma ruptura face aos valores do passado. Mais tade, a sua pesquisa com as formas artísticas do Barroco permitiu-lhe explorar as infinitas possibilidades de trabalho com a escrita e a poesia, associando-a às artes plásticas e impulsionando caminhos surpreendentes na poesia e na arte portuguesas. Por outro lado, como se pode ler no arquivo digital da PO. EX, uma revista em que participaram António Aragão, Herberto Helder, Ernesto Melo e Castro e a própria Ana Hatherly (donde resultou uma exposição e um livro), a obra da autora é caracterizada por uma intensa auto-reflexividade é visível em ciclos de permutações paródicas, no desenvolvimento de formas como o poema-ensaio e a micro-narrativa. Tisanas (obra que é apresentada como work in progress e a última edição/reimpressão é de 2006, é bem a expressão desse trabalho formal, que a autora procurou teorizar. Todavia, a obra de Ana Hatherly, ainda que vivamente marcada pelo experimentalismo, não pode ser reduzida e a própria sofria com alguma incompreensão perante esse facto. O seu trabalho, ainda que sempre marcado pelo jogo conceptual que impulsionou as suas descobertas, desenvolve-se a partir de outros núcleos, que procurou desenvolver em Tisanas, num trabalho de intertextualidade que era feito a partir de autores como Bernardim Ribeiro, Camões, Mallarmé e James Joyce. Não podemos esquecer, ainda a presença de Eros, em Eros Frenético. Não podemos esquecer, ainda, essa obra-prima que é a sua novela O Mestre, escrita em Paris e que tem por cenário o Portugal do Estado Novo.

As obras de Ana Hatherly encontram-se integradas nos principais Museus de Arte Contemporânea portugueses e em colecções privadas nacionais e estrangeiras, nos seguintes Museus e colecções: em Lisboa, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (CAM); na colecção Caixa Geral de Depósitos; na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD); no Museu do Chiado; no Museu da Cidade; na colecção PORTUGAL TELECOM, e na colecção Berardo. No Porto, a sua obra plástica está ainda representada no Museu de Serralves; no Museu Soares dos Reis; na Fundação Abel Lacerda, Museu do Caramulo; na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão; no Museu do Funchal, na Madeira, no Archiv Sohm, em Frankfurt, e na Marvin Sackner Collection, em Miami.

Com o livro de ensaio O Ladrão Cristalino: aspectos do Imaginário Barroco, em 1998, conquista o Premio de Ensaio da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) e, com a sua obra de poesia Rilkeana, é galardoada com o Prémio de Poesia do PEN Clube Português. Ainda em 2003 lhe é atribuído o Prémio de Consagração da APCL (Associação de Críticos Literários Portugueses), pela sua obra O Pavão Negro. 

Também a Sociedade Brasileira de Língua e Literatura a distinguiu, no ano de 1978, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura. Em 2003, foi distinguida com os Prémios de Poesia Evelyne Encelot, em França, e Hannibal Lucic, na Croácia. Em 2009 foi distinguida como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. O espólio da autora está à guarda da Biblioteca Nacional, no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea e parte da biblioteca pessoal está na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

De acordo com Ana Marques Gastão, estão no prelo a tradução para língua francesa da novela O Mestre, assinada por Catherine Dumas, um volume de homenagem publicado por iniciativa da Universidade Federal Fluminense no Brasil (UFF, Niterói) e outro de ensaios, pela Theya, que completa a trilogia sobre o Barroco, intitulada Esperança e Desejo – Aspectos do Pensamento Utópico Barroco. A Mão Inteligente, um filme de Luís Alves de Matos, Lisboa, debruça-se sobre a sua obra, dizendo respeito essencialmente à sua obra artística.

Quem se lembra de Ana Hatherly, relembra a sua postura combativa e coerente, pautada pelo seu amor aos valores humanistas, que defendeu corajosamente. Recordo com saudade o seu olhar claro e inteligente, revelador da sua inquietude e curiosidade insaciáveis. Até sempre, Ana Hatherly!

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