Desse mar que sempre recai na onda

Conceito essencial na época de Goethe e de Schiller, isto é, durante a segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, Bildung significava, no seu sentido mais geral, cultura. Porém, esta configura-se como um conceito extremamente complexo e que designa, ao mesmo tempo, a “formação” dos indivíduos, os “anos de aprendizagem”(Berman, 1995, pp. 72–86) e as viagens que fazem parte dessa mesma aprendizagem. Ela diz respeito à educação dos indivíduos e dos povos e constitui o horizonte de formação da humanidade que cada homem traz em si, conjugando a tradição com a experiência actual.

Designando o elemento formativo, definidor e conformativo de um processo, reenvia-nos sempre para o engrandecimento e para o desenvolvimento do indivíduo, num sentido universalista. O conceito apresenta-se também em Hegel e nos românticos de Iena, como um dos mais fundamentais da educação e pedagogia, num sentido retomado da antiga Paideia. Se o passado é aquilo que está ausente, no entanto ele não desaparece sem vestígios, mas sobrevive de forma latente no presente e importa resgatá-lo. Este é o principal objectivo da Bildung, revivescendo a tradição e o passado no presente.

Como diz Antoine Berman, a Bildung é ao mesmo tempo:

(…) um processo e o seu resultado. Pela Bildung, um indivíduo, um povo, uma nação, mas também uma língua, uma literatura, uma obra de arte em geral, formam-se e adquirem assim uma forma, uma imagem (Bild). A Bildung é sempre um movimento para uma forma, que é forma própria (Berman, L’épreuve de l’Étranger, 1995, p. 73).

Assim, trata-se de um processo temporal e, por essa mesma razão, histórico, ocorrendo por etapas ou épocas. Ela constitui-se como um espírito que será, com Herder, Goethe, Schiller, Wolf, Humboldt, também a personificação do espírito neo-clássico, revestindo-se ainda de outros conceitos que lhe estão adjacentes, como o de viagem [Reise], subjacente à obra de Goethe, Viagem à Itália, destino, aliás, de toda a aristocracia da época. Falamos igualmente do conceito de tradução — que pode ser entendido como viajar entre línguas estranhas, esse pesadelo que atormentou Hölderlin até à sua loucura -, que tão caro foi a Friedrich Schlegel e aos grandes tradutores desse período. Novalis, a seu respeito, desenvolveu uma teoria da apropriação [Zueignung], em que estabelece uma analogia desta apropriação com o próprio acto de comer, uma prefiguração, certamente, do conceito de antropofagia, que apareceria bastante mais tarde na cultura brasileira. Tal significa um modo de apropriação oral que se encontra intimamente ligada à tradução.

A experiência da Bildung é um tema matricial, tanto em Novalis, quanto em Schlegel e Schleiermacher. E essa é precisamente a essência do Wilhelm Meister de Goethe, como a formação do jovem herói, passando por uma espécie de mediações ao longo do seu processo de formação, numa metamorfose incessante. Mas se esta mediação se configura como um dos movimentos intrínsecos à Bildung, não podemos esquecer que dela Friedrich Schlegel também diz: “Sem delimitação, nenhuma Bildung é possível” (Berman, L’épreuve de l’Étranger, 1995, p. 79). Porquê? Precisamente por ser a limitação [Begrenzung] a possibilidade da constituição da síntese, como reconhece Novalis. Ir ter com o outro, alimentar-se dele, mas retornando ao ponto de partida, sem perder os seus limites, tal é a sabedoria que está presente no acto da formação. É também a ideia que encontramos na cultura de Montaigne e de Descartes, cujo ideal de «homme de lettres» constitui uma variante do conceito.

Se a Bildung designa a experiência da alteridade do sujeito, da incorporação — e reconhecimento — do alheio, não o é menos, na sua relação com a língua. Não se trata da apropriação do outro e da sua redução, mas sim da descoberta do desconhecido e do inquietante [Unheimlich], desse reencontrar-se a si próprio mediante essa descoberta. Isto é, ir, mas retornar ao seu ponto de partida como a mais rica das formas de experiência. A filologia, a crítica, a tradução, são assim elevadas à sua máxima expressão, durante a tentativa de recuperar, na modernidade, a experiência única da cultura clássica. E é sobretudo a partir da influência de Joachim Winckelmann (Berman, L’épreuve de l’Étranger, 1995, p. 81), recriando a visão luminosa e apolínea da Grécia Clássica na segunda metade do século XVIII, que a Antiguidade se torna o arquétipo e modelo de formação da juventude na Alemanha. Ou seja, Berman identifica aqui o modo como a “antiguidade funciona como Urbild (imagem originária) e Vorbild (modelo) da própria Bildung.” (p. 81).

Vem isto a propósito do exemplar livro de João Barrento, intitulado Goethe — O Eterno Amador, recentemente publicado pela editora Bertrand. Como o próprio autor escreve, logo no início do livro, “Qualquer aproximação a Goethe tem de ser criticamente cautelosa e relativista” (Barrento 2018, 14). As razões devem-se ao seu estatuto de figura «gigantesca», como o escreveu Erich Heller, citado por Barrento, mas igualmente à bibliografia secundária produzida sobre o autor, bem como a sua personalidade (e escrita) multímoda, nos seus registos vários. O seu pensamento morfológico, tomado a partir da ideia de «forma originária» perpetuou-se, não apenas na botânica e nas ciências, como igualmente na compreensão dos géneros estéticos, tendo sido posteriormente aplicada e desenvolvida por Walter Benjmin, que dela extraiu as mais férteis consequências para os seus conceitos de origem e de imagem originária, fundando a partir desse conceito uma compreensão figurativa da história.

Já em 1995 nos havia oferecido Maria Filomena Molder o seu espantoso livro O Pensamento Morfológico de Goethe, onde mergulha na obra de Goethe e aborda as tonalidades infinitas do seu pensamento, algo que inaugura em Portugal a recepção crítica de Goethe. Também Daniele Cohn, investigadora e professora da Universidade de Paris, publicou pela Campo das Letras, em 2002, A Lira de Orfeu: Goethe e a Estética. Porém, o interesse sobre o autor e a sua obra constituíram um filão literário em Portugal, desde muito cedo, como assinala o próprio João Barrento (desde 1839 que há pequenos ensaios sobre o autor). Garrett, Lopes de Mendonça, em As Memórias de um Doido, Feliciano de Castilho, Antero de Quental, Eça e Camilo, Pessoa, Jorge de Sena (quanto não haverá de Fausto na sua obra O Físico Prodigioso), entre outros. Porém, não existia uma biografia em Portugal (embora haja uma maravilhosa obra de Pietro Citati sobre Goethe por traduzir, mais centrada nos aspectos biográficos do que no seu pensamento), daí que o livro de João Barrento venha assinalar um marco na reflexão e na divulgação da sua obra, que se encontra muito bem traduzida pela Relógio d’Água em Portugal.

Dividindo a obra em oito capítulos que procuram cruzar a vida e a obra de Goethe, João Barrento conduz-nos com a sua mão segura através dos meandros da sua escrita e pensamento. No primeiro capítulo centra-se o autor nos «fantasmas» e nas marcas de água que atravessaram a sua obra, contextualizando histórica, cultural e socialmente a sua época, onde encontramos no universalismo e na modernidade os seus principais vértices (p. 57). «Génio proteico», como lhe chama Barrento, Goethe procura fixar o tempo vivido numa «chinoiserie literária» (Ibidem), que dará lugar às obras-primas que conhecemos hoje: Fausto, que ocupou a maior parte da sua vida, e Torquato Tasso (traduzidos por João Barrento), As Afinidades Electivas, Divã Ocidental-Oriental, Wilhelm Meister, Viagem à Itália e Os Anos de Peregrinação. Estaria a ser injusta se esquecermos Werther e as restantes obras, mas aquelas dizem respeito a um período de maturidade que lhe conformou esse génio inigualável.

João Barrento, Professor, Ensaísta, Tradutor

Figura singular e narcísica, como nos dá conta a obra Conversações, de Eckermann e o próprio Goethe, que afirmava não conhecer ninguém mais presunçoso que ele próprio (e o seu século não estava preparado para dois génios como Goethe e Schiller, essa «amizade» sempre tão polémica), além de ter uma obra versátil e prolixa, pois escreveu prosa, memórias, poesia, ensaios, crítica literária e estética, tratados de Botânica e Anatomia, teve uma vida abastada que lhe propiciou inúmeras viagens, que lhe alimentavam o espírito (e também a carne) insaciável e que transbordava na sua obra. A sua importância foi também política, tendo gozado de enorme prestígio social em vida. E, em rigor, a sua importância para a determinação do movimento do Pré-Romantismo foi fundamental, em vários sentidos. Não apenas pela possibilidade de revisitação do classicismo, mas também pelo modo como o seu pensamento morfológico deixou um legado incomparável para os seus vindouros.

Na verdade, um estudo de conjunto como o de João Barrento, com o seu rigor, precisão e um estilo de escrita fluído, fazia falta entre nós, onde se abrem ainda «linhas de leitura» que introduzem os leigos no assunto, e onde é dada uma excelente panorâmica da recepção crítica do autor em Portugal. No capítulo VII, intitulado “Crónica: Uma Vida, Uma obra, Uma Época”, traça João Barrento uma cronologia rigorosa da vida do autor.

Nesta biografia pessoal e literária, o seu autor oferece-nos facetas de um Goethe mais íntimo, mas também analisa a sua obra à luz do seu percurso de vida aventurosa. Dá-nos conta daquele que foi um génio na sua época e que lavrou indelevelmente a literatura universal, cuja tradição humanista está hoje em franco declínio. Era a isso que aludia Benjamin a Scholem quando se referia à perda da tradição e à necessidade de reactualização dessa tradição humanista, numa carta em que usava uma bela metáfora: “um mar agitado, mas para a vaga (se a tomarmos como a imagem do homem) só há uma coisa a fazer, abandonar-se ao movimento para crescer até formar uma crista e tombar em espuma”.

Este é bem o exemplo da instrução e da prodigiosa liberdade do recair, em que mestre e discípulo se perpetuam nessa continuidade do gesto. Se a tradição sobrevive na transmissão do conhecimento e na passagem de geração em geração, então o clímax da experiência humana condensa-se nesse “crescer até formar uma crista”, para “morrer” na espuma, num movimento incansável e de perpétuo retorno. Na tradição autêntica, o que aprende, o que estuda, é o que se transforma internamente naquele que ensina, num movimento natural e intrínseco, de forma contínua, que obedece ao movimento da própria tradição. Neste caso, falamos de Goethe, esse “Eterno Amador”.

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