Rui Nunes, A crisálida. Lisboa: Relógio d’Água, 2016, 46 p.
Recebeste mais do que deste para me salvar, como te vou demonstrar. Em primeiro lugar, habitas na terra dos helenos, em vez da dos bárbaros, conheces a justiça e sabes usar das leis, sem recorrer à força.[1] Acolhendo na sua argumentação o valor negativo que adquirira em Atenas o conceito de “bárbaro”, em oposição ao de “heleno (= civilizado)”, assim responde Jasão à acusação de Medeia de tê-la repudiado, a ela que por seu amor atraiçoara o pai e o irmão na longínqua e “bárbara” Cólquida. A terrível vingança de Medeia – que mata os próprios filhos para castigar Jasão – é o tema da tragédia do mesmo nome de Eurípides. O recém-publicado livro de Rui Nunes, A crisálida, revela-nos, porém, que no porão de Argos, o navio de Jasão, uma “crisálida espera o dia em que desdobrará as asas e abandonará com outra morte o invólucro da morte” (39). A metáfora exuma as questões envolvidas nesse confronto fundacional da civilização do Ocidente, cuja força marca a história e o solo europeu em uma sequência de episódios cruentos, nos quais se espelha que “[a] vingança é uma eira / que se acrescenta de um passo / a cada passo” (40).
O livro, denso nas suas exíguas 46 páginas, já chama atenção pela capa austera e ominosa: toda em negro, nela sobressai uma bela crisálida em tons de negro e laranja, lembrando, pela forma, o elmo de um guerreiro grego. Por outro lado, insinuam-se também lembranças associadas às cores recentemente usadas pelos terroristas e suas vítimas nas notícias de degolamento transmitidas pela rede e pelos noticiários televisivos. Essa é, aliás, a primeira visão que fere os olhos do leitor no “Preâmbulo”, o qual funciona (já mesmo pelo seu destaque em itálico) como uma espécie de coro na tragédia grega: “Os mapas tornaram-se frágeis e os mortos não têm um deus atrás que os receba: / mostra-se o carrasco vestido de carrasco e o lampejo da faca: a morte é sempre antiquíssima.”(7) Ao contrário, porém, do desenlace trágico, que deveria suscitar no espectador o horror visceral e a catarse, as notícias atingem-nos hoje numa tela que podemos controlar à distância, apagando-a até, quando se atreve a transtornar a nossa rotina anódina: “que horror, às oito da noite, que horror, à hora do jantar, que horror,” (8).
O texto constrói-se sob a forma de “bocados”, mimetizando os bocados/flashes entre os quais nos movemos, que resistem à ordenação e só se submetem à apreensão da sua simultaneidade: “O simultâneo é a única ordem que consegues dar ao mundo.” (12) Por outro lado, a forma de resistir ao estilhaçamento da vivência e de recuperar uma ordenação em que o simultâneo ceda lugar à memória e à lição do tempo é a “nomeação”: há um “eu” que se apropria da escrita, procedendo ao trabalho minucioso de transformar “os destroços em objectos, que os nomes rondam com teimosia, sanguessugas à volta de um boi preso no charco, o ruminante boi de um nome.” (14) Os “bocados” textuais, recusando-se a compor um “belo fragmento”, transpõem fronteiras espaciais e temporais, recompõem nexos esquecidos ou imperceptíveis: a cabeça da avó e a cabeça da princesa de Lamballe coexistem em simultâneo na visão do “narrador”; em outro bocado, informa-se que “estamos em München, 27 de Novembro de 2014”, na Marienplatz contemporânea, onde a luz cai com peso distinto sobre os sapatos de 3000 euros e sobre a mulher romena no passeio, com um copo de plástico a recolher as moedas; a reconstrução do pós-guerra é uma máscara que não dissimula a memória dos eventos ali passados, aliás pressagia a certeza de um retorno: “[u]m dia, em Marienplatz, os pombos voarão espavoridos, serão atirados contra as paredes dos prédios, cairão em penas e sangue, escorrerão pela torre da igreja, de apóstolo em apóstolo, de pináculo em pináculo, enquanto as ambulâncias, as sirenes, os vidros partidos de uma Kristallnacht qualquer.” (32) É um cenário apocalíptico – mas nem tanto, já que não aponta para o fim dos tempos, só para a recorrência de um “tempo incompleto, este, que as ervas aproveitam para crescer, escondendo as intermitências de uma guerra.” (28) Enquanto a erva cresce, a memória apazígua-se nas pausas. No trecho intitulado “(memorial do Holocausto. Berlim. 2014)”, visitam-se as “sombras, / erectas, erradas, que Ulisses não visitará. (…)/ No luar de Novembro, resíduo de noites mais antigas, o rapaz levanta a saia da rapariga e empurra-a contra o negro da estela: fodem. E assim esquecem a matéria dessas mortes”. (43)
A simultaneidade e o entrelaçamento textual dos eventos ocorridos em tempos díspares remetem-nos, portanto, para a continuidade histórica da “Europa, a velha e porca Europa” (31) e dos diversos grupos que se vêm sucessivamente autonomeando porta-vozes da civilização em luta contra a barbárie, desde o seu momento fundador, isto é, aquele em que os gregos começam a se ver como senhores da lei e da justiça a serem impostas aos povos bárbaros. As distorções decorrentes da intolerância e da presunção de superioridade, bem como as contradições geradas pelas alianças oportunistas e as também oportunistas traições entre os grupos em confronto estavam já, naturalmente, presentes na tragédia de Eurípides: Não há mulher alguma na Grécia que queira jamais fazer tal, essas às quais eu te dei preferência como esposa, contraindo uma aliança odiosa e funesta para mim, tu que és leoa, não mulher, dotada duma natureza mais selvagem do que a Cila Tirrênica.[2] São estas as sementes que a Europa carrega no seu barco mítico: “[o] exílio e a traição, / o desprezo e a vingança”. (39)
Os leitores de Rui Nunes reconhecerão alguns traços característicos da sua escrita: a desautomatização da linguagem, dos gêneros e das estruturas narrativas, recusando a facilitação do novelesco e exigindo do leitor a (re)configuração de conjuntos significativos; a convivência de testemunhos pessoais lado a lado ou imiscuídos com depoimentos onde o olhar penetra fundo na experiência do “outro”, como, neste caso, o imigrante: “tornam os lugares provisórios, sabem construir uma fuga, com a minúcia do irremediável. E falam uma língua que não lhes pertence. São bocados as línguas que falam: palavras soltas que o desespero transforma numa frase. // A minha pátria é a minha língua.” (9-10). Mas também surpreende a presença de um humor cáustico, como no trecho sobre os mortos: “eu, por exemplo, gosto de escrever sobre mortos, dão-me tesão, fazem-me rir, sempre fizeram” (19). Um humor que destila a indignação raivosa contra a hipocrisia e a indiferença generalizada, mas também corrói a suposta e superior isenção do próprio escritor: “Isto é uma banalidade. Mas é o que somos. Homessa (ponto de exclamação). Agora dei nisto.” (20)
Yara Frateschi Vieira
São Paulo, 1 de maio de 201
[1] Eurípedes, Medeia. Introd., trad. do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. In Eurípedes, Tragédias. Coimbra / Lisboa: Fac.de Letras da Universidade de Coimbra / Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 250.
[2] Id., ibid., p. 285.