A coleção Trás-os-mares, publicada pela editora Circuito com o apoio do DGLAB (Direção-Geral dos Livros, dos Arquivos e das Bibliotecas Públicas de Portugal), e com a coordenação editorial de Maria João Cantinho e Renato Rezende, apresenta ao público brasileiro prosadores portugueses contemporâneos da mais alta qualidade literária. A primeira leva, publicada em abril de 2018, compreende Até para o ano em Jerusalém, de Maria da Conceição Caleiro, Éter, de António Cabrita, A loucura branca, de Jaime Rocha, Adoecer, de Hélia Correia e Noturno europeu, de Rui Nunes.
António Cabrita é um ex-jornalista (nos dezasseis anos finais da sua carreira de jornalista esteve ligado, como crítico de cinema e de livros, ao semanário Expresso, de Lisboa) convertido agora em professor universitário, em Maputo/Moçambique, e escritor. Tem livros publicados em Portugal, Moçambique e Brasil. Sendo um poeta referenciado da geração de oitenta, na última década dedicou-se prioritariamente à ficção (contos e romance), tendo sido os seus livros sistematicamente finalistas de alguns dos mais prestigiados prémios do espaço da lusofonia. A obra Éter foi finalista (short list) do Prémio Pen Club, em Portugal, em Janeiro de 2017.
Em Éter, da Editora Abysmo, 2015, António Cabrita reúne sete narrativas urbanas, que se localizam nos dois países em que tem alternado a sua vida, Portugal e Moçambique. São sete histórias com distintas estratégias narrativas, tal como são variados os seus temas, sendo, contudo, transversal uma idêntica tensão entre a memória pessoal e o esquecimento colectivo, bem como a escrita peculiar do autor de A Maldição de Ondina. Os seus diferentes narradores actuam na fronteira entre a verdade e a verosimilhança, adoptando o jogo perigoso de fazer coincidir drama pessoal e memória colectiva. Sobre esta obra disse José Mário Silva no Expresso: “Quem conheça as obras mais recentes de António Cabrita, nomeadamente esse belo romance que é A Maldição de Ondina (2013, finalista do Telecom), não se espantará com as alturas a que consegue subir a sua escrita, essa mistura de lirismo e galhardia, devaneio e precisão, criatividade à solta e esmero oficinal. Ainda assim parece que o antigo jornalista escava cada vez mais fundo na jazida que inventou para si mesmo, a prosa está cada vez mais livre, mais sensorial, mais sensual, mais jazzística (próxima dos solos de Miles Davis, tantas vezes evocado ao longo deste volume).”
Maria da Conceição Caleiro nasceu e vive em Lisboa. Concluiu em 1989 o mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas na Universidade Nova de Lisboa com a dissertação Estudo de Clarice Lispector. Lecionou Língua, Literatura e Cultura Portuguesas em Clermont-Ferrand e em Paris III. Entre 1998 e 2003, trabalhou como assessora no Instituto Português do Livro e Bibliotecas. No âmbito da promoção da leitura, desenvolveu com a Culturgest uma série de debates, além de ter lançado o projeto Comunidades de Leitores.
A autora escreve regularmente em jornais e revistas como a Colóquio/Letras, LER, Egoísta e sobretudo no suplemento Ípsilon do jornal Público, onde, há muito, faz crítica literária de vários gêneros e autores. Em 2009, estreou no romance, com a publicação de O Cão das Ilhas (Sextante), que obteve o prémio PEN Clube Português para Primeira Obra publicada, a que se seguiu Até para o ano em Jerusalém, finalista do prémio PEN Clube Português para Narrativa, em 2016.
A história do encontro entre Maria Luís e David, em Até para o Ano em Jerusalém é também, nas palavras d Rui Nunes, “uma história de desamparo que os leva numa espécie de peregrinatio ad loca infecta, de Lisboa aos Açores, ao Brasil, à memória de um tempo alemão passado, mas tão presente. Para estes dois, toda a terra é uma expulsão: a Europa expulsa os judeus, os Açores expulsam o exilado, o Brasil acolhe, integrando, assimilando, isto é, expulsando cada um da sua identidade, esbatendo quase todas as diferenças”. A narrativa é uma reflexão sobre a memória individual, civilizacional e cultural, que se alicerça em fragmentos da História, do Holocausto e da interminável diáspora do povo judeu. Até para o ano em Jerusalém foi finalista do prêmio PEN Clube Português, em 2016.
Hélia Correia nasceu em Lisboa. É licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e mestre em Teatro da Antiguidade Clássica. Também poeta e dramaturga, a escritora revelou-se um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa na década de 1980, ao publicar o seu primeiro romance O Separar das Águas, a que se seguiram, entre outros, Montedemo, Insânia, A Casa Eterna, Lillias Fraser, Bastardia e Adoecer.
Hélia Correia recebeu vários prémios literários, tendo sido galardoada com o Prémio Camões em 2015, em que lhe foi reconhecido a imaginação, o poder de criação de personagens e o invulgar modo de trabalhar a língua portuguesa.
Adoecer elabora a vibrante história de amor entre a modelo, pintora e poeta Elizabeth Siddal (Lizzie, 1829–1862) e o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti (1828–1882). Como pano de fundo muito bem documentado, surge a Inglaterra do século XIX, e o grupo dos pré-rafaelitas, empenhados no regresso a uma certa pureza dos olhos e da arte. Mas o voo do romance é outro: o do destino, do amor e da doença como luz e danação. De acordo com Eduardo Lourenço, “Adoecer é um dos melhores romances dos últimos cinquenta anos”. Já Miguel Real escreve, “Este novo romance de Hélia Correia deveria ser de leitura obrigatória para todos os aspirantes à arte de escrita literária. (…) A autoria pessoal transfigura-se em autoria universal — é um texto de todos e para todo o tempo. De atual, mal publicado passa a ser um clássico. Não se pode pedir mais a um romance.”
Jaime Rocha nasceu em 1949 na vila de Nazaré, em Portugal. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa. Viveu em França nos últimos anos da ditadura portuguesa. Publica desde 1970, poesia, prosa e teatro. É autor de cerca de uma trintena de livros e recebeu alguns prémios literários ao longo dos anos. Os seus mais recentes livros editados são Necrophilia e Preparação para a Noite, poesia; O Regresso de Ortov, teatro; e Rapariga Sem Carne e Escola de Náufragos, romance, este último finalista dos Prémios Oceanos e Correntes D’Escritas.
De acordo com António Cabrita, em A loucura branca, Jaime Rocha “apresenta-nos um texto que mergulha no quotidiano e no mundo trivial com uma demência quase surreal, cruzando Kafka com os filmes de David Lynch. Um misto de mistério, sedução e humor sutil.” Para Miguel Real, “A capacidade de descrever situações claustrofóbicas de um modo estético, não recorrendo a símbolos narrativos neorromânticos ou góticos, utilizando exclusivamente um léxico de referentes semânticos realistas, identifica e singulariza a obra romanesca de Jaime Rocha no horizonte do romance português contemporâneo.”
Rui Nunes nasceu em Novembro de 1947. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Lisboa e enveredou pela atividade de escritor, em paralelo com a de professor de Filosofia. Na década de 60, passou pelos jornais, tendo visto censurados muitos dos trabalhos. Publicou o seu primeiro livro, As Margens, em 1968, regressando em 1976 com Sauromaquia.
Imprimindo à sua escrita um discurso de características muito peculiares, Rui Nunes não nega a influência de escritores em que os temas como a dor, a doença e a morte são recorrentes nos seus livros, com destaque para Kafka. Porém, e apesar desta temática recorrente que flui na sua obra, o autor assume o ato de escrita como uma forma de sublimar a dor e com preciosos e comprovados (por ele) poderes terapêuticos. Por isso, gosta e tem prazer em escrever.
Foi considerado por Manuel Frias Martins, membro do Júri que atribuiu ao seu livro Grito, em 1998, o Prémio GPRN (Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE)), “uma das estrelas mais brilhantes da constelação literária portuguesa — ocultada, tantas vezes pelas nuvens do fácil e do óbvio”, aludindo à sua prosa densa e reflexiva.
De acordo com Hugo Pinto Santos, crítico do suplemento literário do jornal Público, «Ípsilon», “Noturno Europeu (…) descreve “uma Europa comum, loura, atlética, que uiva pelo seu guia», e resume, na escolha fixada pelo título, uma situação e determinado posicionamento que é identitário da própria escrita. Esta «europa dos lugares indiferentes», mapeada como uma espécie de metonímia do mundo(…)”. A sua escrita poderosa e convulsa coloca questões que dizem respeito à identidade dessa Europa, hoje atravessada por questões de identidade, que obrigam a repensar os problemas e as causas que levaram às grandes guerras do século XX e ao holocausto. Nesta obra nada nos deixa indiferentes, marcados que somos por um destino histórico comum e que mostra a o velho continente da Europa como um território onde falhou a tentativa de implementar uma identidade homogénea, espelhando nela — enquanto metáfora — todos os sinais da catástrofe iminente.