Começo a ler Do ínfimo e algo retém minha atenção desde antes do começo: o índice. Demoro meu olhar nos títulos dos poemas. Ainda que não estejam explicitamente lá, três momentos me chegam a partir da indicação de leitura sugerida: 1) assombrar, 2) nomear, 3) velar. Poderia dizer isso de outro modo: primeiro, o assombro; depois, o reconhecimento: dar nome à sombra; e então, o trabalho de luto: velar. Três momentos. Ou melhor, três movimentos. Este livro parece fazer estes três movimentos. É por isso que prefiro o verbo (assombrar, nomear, velar), porque indicam o movimento, a ação, soando também como um imperativo, uma lei. Uma lei que não é a do poder, mas a de quem sobreviveu e sobrevive a ele. Não a lei do poder, mas por causa do poder e de suas consequências nefastas. É como se estes movimentos dissessem: é preciso assombrar, é preciso nomear, é preciso velar. Mas aqui não há apenas ativo: há ativo enquanto passivo. Não há apenas sujeito: há sujeitado, sujeito enquanto objeto, assujeitado. É nesta lei que Do ínfimo se sustenta, na lei de quem se move no sofrimento, de quem se move no (e com o) gesto de ser afetado, em cuja ação sofrida não indica paralisia, mas movimento. Assombrar é sofrer o assombro, é ir com o assombro, sendo afetado por ele. Nomear é padecer do nome e desaparecer no nome, é ver quão insuficiente e frágil um nome é, e, por isso mesmo, nomear a insuficiência, nomear porque é insuficiente, nomear porque é preciso velar. Velar é também ser afetado pelo velamento, sofrer a perda ao mesmo tempo em que a afirma. Assombrar, nomear, velar: eis a lei do sobrevivente. Daquele que se move enquanto sofre.
Vendo como movimento e não como momento, deslocamos o “quando” para o “como”. Saímos de uma temporalidade pontual, que se abre a uma atemporalidade que se inscreve em cada gesto. O tempo deixa de ser o cronológico e passa a ser o do corpo. O que seria a História senão a atemporalidade do corpo? O tempo marcado pelo corpo, pelos corpos moventes, pelos corpos que se movem. Preferindo o verbo e o duplo movimento implicado na ação (ativo e passivo, ao mesmo tempo), saímos também do substantivo (assombro, nome/sombra, velamento). Em algum lugar desta escolha, é a substância que é tirada. Porque o livro não se reduz a uma substância ou a estes substantivos. Não se reduz a estes nomes. Sua insubstancialidade está em abrigar todos os nomes, e se abrir a todos os nomes, na impossibilidade de ser reduzido a uma essência, a um instante e a um nome. Do ínfimo, do ínfimo de um nome, abre-se todos. E todos os instantes. Todo nome deixa de ser próprio e passa a ser comum, como assombro, sombra, velamento. A propriedade é tirada em nome de um comum. E por isso torna-se insubstancial, porque se abre a uma comunidade, a todos os sobreviventes, a todos que sofrem e se movem no e com o sofrimento. Não são sobreviventes aqueles que não sofrem. São, esses, os detentores do poder. Fora os poderosos e os sobreviventes, há apenas os mortos. E sobre-viver significa, talvez paradoxalmente, velar. Sobrevivente, esse modo de viver, de estar no mundo, não existe se não for intrinsecamente junto a fitar os mortos, se não for entendido como estar junto aos mortos, a todo momento, cara a cara com eles, fitando seus rostos, velando seus corpos, de cara com a morte.
Começar é começar do ínfimo. E começar Do ínfimo é se deparar com um rosto. Ou melhor, com a “Arqueologia de um rosto”. Mais precisamente, com uma decisão:
“Não vou mandar limpá-lo”, decidiu.
Decidiu o homem da mercearia
que deixara amarrotar o rosto pelas vielas
enquanto descia a calçada
e os olhos, manchados de sonhos antigos,
resvalavam para dentro.
Começar Do ínfimo é encontrar um rosto. Ou seja, encontrar uma decisão. Talvez porque um rosto já contenha todas as cisões, talvez porque um rosto já seja cindido, riscado, traçado, expondo tão somente os traços, os riscos. Expondo tão somente aquilo que se mostra como abertura: vias, vielas. O homem da mercearia, um homem comum, um homem qualquer, é preciso ressaltar, decidiu deixar-se amarrotar o rosto pelas vielas, como se portasse as vielas no rosto, como se as vielas lhe fossem o rosto. E o que seriam os olhos resvalando para dentro senão a exposição do vazio dos olhos? Esse vazio exposto que não se apreende (“olhos presos ao vazio”), apenas aparece, exposto, ou seja, que se coloca no fora. Curiosamente, usamos a mesma expressão para dizer olhos fundos e olhos vazios, como os olhos resvalados ou voltados para dentro, no poema. Estes olhos fundos, para dentro, expõem o vazio que se abre ao fora. Porque estão expostos. É por isso que encontrar um rosto é encontrar um fora.
Em “O Rosto”, de Meios sem fim, Giorgio Agamben diz que “todo rosto afunda-se e desmorona-se em si mesmo”, deixando “emergir o fundo informe que os ameaça”. “Arqueologia de um rosto”, o primeiro poema do livro de Maria João Cantinho, é esse movimento de tocar o fundo, o fundo dos olhos, o rosto fundo, o rosto desmoronado, o resto. Não como se o resto fosse as sobras do rosto, mas como se o resto fosse o rosto, como se o rosto, em sua superfície, em seus riscos, fosse o resto, o que resta. O rosto como esse irredutível. As fendas por onde nos expomos, por onde ficamos expostos. Os caminhos abertos, veias, vias, os caminhos viáveis por onde a viabilidade acontece. Na decisão de escolher, reiteradamente, a impureza (“Não vou mandar limpá-lo”; “nunca mais vou sequer mudá-lo!”), “como uma bomba/ a rebentar-lhe o coração”, “os olhos sujos de vida” atravessam a inviabilidade, cortam-na, rasgam-na, contra a inviabilidade da indiferença, os rostos que desfilam espetacularmente “indiferentes” à morte. “Arqueologia de um rosto” é a vida que se abre do ínfimo, a vida que pulsa em um rosto cujo olhar se direciona para a morte do mais ínfimo que o ínfimo como um pássaro morto. Nesta arqueologia chega-se ao resto via o rosto. E do rosto chega-se ao fora do rosto. “Arqueologia de um rosto” não é a escavação do que está por trás, como se revelasse uma verdade escondida: é o mostrar o que aparece, a impureza que reside na superfície, um traçado de vida que pulsa neste sítio comum de vias porque ele está tão somente voltado para a morte. Começar do ínfimo é decidir começar do rosto: decidir começar do resto, do rastro do rosto.
“Por mais que te olhe o rosto/ […], o enigma não se aclara”. Depois do começo arqueológico, subvertendo o lugar da identidade e abrindo esse ínfimo, esse resto, como um sítio frágil, como ruelas ou um campo de batalha, abrindo esse rosto como lugar por onde se abre toda a História, deixando de ser próprio e passando a ser comum, o segundo poema, “Monólogo Improvável”, começa com o rosto e desde o rosto, levando a crer que, depois do começo (da História, dos corpos, do tempo?), tudo, ainda, é rosto. A contraposição dos versos indica que rosto é impasse, enigma – palco de decisão, tribunal, praça pública, rua, campo de batalha –, longe de ser o lugar que revela uma verdade, uma pureza, uma essência. O poema poderia ser dito por qualquer um que está na condição de ser aquele ou aquela que espera: “Poderia ser Joseph K/ ou qualquer outro que espera”. Poderia ser dito por qualquer um ou qualquer uma de nós que se depara todo dia com o triunfo do poder. E aí o poema deixa de ser um monólogo: o enigma reside em o poema tornar-se este lugar polifônico que abriga vozes perdidas: “o que não chega nem se revela/ o que pergunta e nunca ouve/ o que sonha e guarda fantasmas/ o que ouve vozes perdidas no nevoeiro. ”. Um lugar, sobretudo, de chamado, de apelo, e por isso também de escuta, porque de perguntas sem respostas. Como um labirinto kafkiano, o poema é este lugar sem saída que abriga a impotência diante da lei, diante do tempo, diante da salvação que não vai chegar, diante da espera. Mas na medida em que ele lida com o campo da potencialidade, do que poderia ter sido, de quem poderia ter dito, uma voz se abre a muitas, e a possibilidade de ser Joseph K se abre para a possibilidade de ser qualquer outro que se encontra na condição de Joseph K, e só isso já indica uma potência, a potência de o poema dizer aquilo que Joseph K não disse, mas poderia ter dito, e a potência disso ser estendido a cada um que se vê impotente. Movendo-se com a impotência e dando lugar a ela, o monólogo torna-se cada vez mais improvável porque 1) estar nesta condição é estar mesmo “sem provas”, desprotegido, desamparado, 2) porque o improvável já está no campo da possibilidade e não do fato, não do que provavelmente aconteceu, mas do que poderia ter acontecido, 3) porque o que começa a se abrir de uma voz é o reconhecimento de outras vozes, ou seja, o poema, em seu monólogo, passa a abrigar um diálogo.
Guy Debord diria que n’ A Sociedade do Espetáculo há a morte do diálogo. O espetáculo acaba com o diálogo. Nesta sociedade em que o que prevalece soberanamente é a morte do diálogo como a morte da diferença, talvez “Monólogo Improvável” seja a sobrevivência do diálogo enquanto poema – e no enigma do poema. A morte do diálogo é o triunfo de apenas uma via de comunicação: a comunicação que comunica o poder. A improbabilidade deste monólogo talvez esteja em ele não ser um monólogo na medida em que ele não comunica, mas expõe uma ausência, um vazio: “Por mais que te olhe o rosto/ em busca de sinais/ é essa ausência que me faz cair/ para fora da língua,/ um vazio que nos espreita”. E expor esta ausência e este vazio é traçar uma abertura para o diálogo. Não preencher o vazio, não suplantar a ausência, não se comunicar para erradicar a ausência, mas comunicar a ausência, indicar o vazio e fazer do vazio uma via de comunicabilidade, falando como quem cai na língua com a ausência, e não como quem domina a língua escapando da ausência. Porque esta ausência que nos faz cair para fora da língua nos faz mover, não como quem aprende a dominar a língua, mas como quem cai na língua, tropeçando nela à medida que se está caindo para fora de seu domínio. Um poema é a queda da língua e na língua. E nestes buracos abertos encontramos, em uma voz, todas as vozes perdidas. E isso é uma forma de contato.
Assim como rosto é impasse, entrar em contato com tudo que é ínfimo talvez seja encontrar-se sem caminhos, aquilo que os gregos chamariam de aporia. “Mas aquele que se espanta e se encontra em impasse [em aporia] reconhece sua ignorância. ”, disse Aristóteles em Metafísica, neste trecho traduzido por Alberto Pucheu no ensaio “Poesia, filosofia, política”. Encontrar-se em aporia se relaciona diretamente então com o não saber. Deparar-se com o não saber: “Não sei senão do ínfimo” – começa o terceiro poema, de título homônimo ao livro. Nele, escutamos três vezes: “nada sei”, “nada sei”, “nada sei”. O “nada” ecoa ainda três vezes na última repetição: “nada sei, nada de nada”, dando fim à última estrofe com os versos “escondido que ele é/ no ínfimo e na sombra. Oculto. ”. Não saber senão do ínfimo é não saber senão do que está escondido, oculto, na sombra, daquilo que não se revela, daquilo que é velado. Não saber senão disso é, portanto, abandonar o saber, renunciar a “grandiloquência” e não escutar senão o “murmúrio”. É assim que Maria João Cantinho dá toda dignidade e grandeza ao ínfimo. Não saber senão do ínfimo é desconhecer todo o conhecimento prévio e reconhecer a ignorância tal como nos deparamos espantados ou assombrados, porque o espanto ou o assombro nos desloca para um lugar em que nos vemos suspensos de todo conhecimento ou saber.
Para Aristóteles, assim como para Platão (que também comparece no livro), o espanto estaria na origem da filosofia, como podemos ver na passagem que dá início ao trecho citado acima: “Através do espanto, pois, tanto agora como desde a primeira vez, os homens começaram a filosofar”. Mas espantar-se não moveria apenas a filosofia, pois ele acrescenta: “Por conseguinte, o filômito é, de certo modo, filósofo”. O que une filômito – que para nós poderia ser o poeta – e filósofo é o espanto. Espantar-se: não seria essa a condição de todo poeta? Fazer a experiência de tudo que é ínfimo não seria entrar em contato com a aporia, com o não saber, com a ignorância, com as coisas, as “pequenas coisas” – isso que é difícil de nomear – “que não chegam à palavra”? Se começar é começar do ínfimo, do resto, o começo deste poema, intitulado “Do ínfimo”, mostra que começar do ínfimo é começar com o não saber, é começar à medida que não se sabe, porque começar do ínfimo é fazer a experiência do espanto, do assombro, e resguardar o assombro: assombrar-se e assombrar, assombrar-se e velar, assombrar-se e resguardar a/na sombra.
O espanto não reside apenas na alegria, no amor, mas também na dor, no terror. Eis duas vias, em uma, do espanto: assombrar-se diante do assombro do terror, assombrar-se diante da sombra dos mortos. “[T]oda literatura é, ao mesmo tempo, júbilo e terror”, disse Silvina Lopes em Literatura: defesa do atrito. Como ela, poderíamos dizer que poesia é, ao mesmo tempo, alegria e dor, amor e terror, estas duas modalidades do espanto. Talvez seja preciso dizer que assombrar-se é também o que possibilita o amor, porque é com a capacidade de ter um gesto de espanto que mostramos não ser indiferentes. Às vezes, assombrar-se é todo um gesto de amor que resta diante da impotência. Quando não é o gesto que resta, é uma passagem a um gesto, uma passagem para que seja possível um gesto de amor e de justiça. Paradoxalmente, uma passagem cuja condição é a aporia: “o assombro/ o desvario de palavras,/ essa lâmina que rasga o real/ uma garra de nada, uma pedra/ no teu caminho.” (“Assombro”). Acontecendo no e como impasse, como uma pedra no caminho, o assombro é tanto o que abriga o impasse, mantendo-se como o único gesto que resta, quanto o que permite o passo, o impasse necessário ao passo, expandindo-se na potencialidade de “um abismo em forma de rosa”, dando passagem a outro gesto, sendo, enquanto impasse, o que permite o passo. Ele acolhe tanto a potência quanto a impotência, e, como o que resta, impotente, é uma impotência potente, porque rasga, abre, desloca. Há sempre um movimento implicado nesta impotência. Por isso, ele sempre é potente, porque sempre é um gesto, mesmo quando ele acolhe e denuncia o impasse, a pedra no caminho, ele já é passagem, abertura a outro gesto.
O poema “Gestos” finaliza com “uma definitiva mão/ que tudo anoitece. ”. O que resta é pó, como vemos na última estrofe: “A única coisa que fica é o pó/ uma definitiva mão/ que tudo anoitece. ”. Nas variações dos modos de ir e vir, dos caminhos, dos desvios, esbarramos irremediavelmente com este impasse, este gesto: a mão da finitude. Isso que aponta para o que finda, como o dia na noite, a luz na escuridão. Isso que também não precisa ser entendido como começo ou fim, mas apenas como passagem. Passagem que, porém, só existe na tensão entre vida e morte, que não existe se tomarmos apenas uma ou apenas outra. Passagem que sempre se depara com o impasse definitivo: a morte. Lembro-me então de um verso da poeta carioca Bruna Mitrano, que diz: “em toda alteridade resta um pouco de fim”. É como penso este duplo gesto em um mesmo gesto: em toda alteridade resta um pouco de sim, pois a mão dá passagem, e a mesma mão que dá passagem, que diz sim, acena para o fim, porque tudo que é outro aponta para o fim.
Do ínfimo é um livro de passagens, caminhos, jornadas. É um lugar de abertura – a um chamado, a uma escuta, ao desejo, sobretudo. A isso que existe enquanto chama (na duplicidade desta palavra: verbo e substantivo), que não pode ser capturado nem fixado, que não obedece ao tempo cronológico, mas a um tempo outro, “entre a promessa e o exílio” (“O eco”), habitando o “limiar”, esse entrelugar, isso que não se reduz a um ou a outro, que não chega a ser, que só existe “no limiar da sombra ao ser”, que deve permanecer como possibilidade para continuar sendo desejo, que deve permanecer como potência para continuar chamando, ecoando como um chamado tal como nos sonhos ressoa a manifestação de nossos desejos mais ocultos. “Pode um homem sonhar, ainda,/ enquanto as asas do mal o assaltam?” (“O ar que as mulheres respiravam”). Talvez o sonho seja também o que resta, este reduto possível do desejo.
Caminhar com o ínfimo é poder retomar o começo e é poder começar de novo. Mas isso não significa retornar a um passado, a não ser que este passado abra caminhos ao que já é e ao que ainda vem a ser, ao que ainda não é, a não ser que ele emita “essa luz irrepetível/ abrindo caminhos da manhã/ inteira/ no som do que já é passado/ e ainda não aberto/ ao que virá. O que é.” (“Rachmaninov”). Retomar um começo que se localiza entre o que já foi e o que ainda não é, um começo que opera como um atalho, uma passagem que se abre a todos os tempos e resguarda como potencialidade o “ainda não”, o que ainda não está aberto ao que virá. Abrigando todos os tempos, estes versos entoam um “ritmo milenar”, ecoando tudo o que já aconteceu e, ao mesmo tempo, uma “voz sem memória”, uma voz que ecoa “de todos os famintos” que já existiram e de todos que ainda não chegaram a existir (“O lento passo dos nómadas”).
O começo retomado é evocado com um silvo que anuncia um modo diferente de seguir, como acontece por exemplo em “O eco”, com a repetição do verso “E nada nos era vedado”. Um ritmo que o ouvido reconhece como um bumbo cuja batida traz a atenção da escuta para uma diferença que virá. A repetição de um mesmo verso que dá início a algumas estrofes em alguns poemas mostra a força do efeito desta cadência ritual. A retomada pela repetição traz a força afirmativa, “[e]ssa força que reclama o alto/ e o nome de cada ser” (“Rachmaninov”), essa força que clama e reclama, essa força afirmativa da evocação como abertura a novos abismos e caminhos, novos impasses e passos como lemos em “O lento passo dos nómadas”: “convocando sombras/ nesse lugar que é caminho/ e muro, pergaminho/ fosso e ponte”. Neste compasso, que também se compõe de saltos (teria aqui um compasso, uma cadência?) ao começo (como na ursprung benjaminiana), há poemas cujos versos iniciais de cada estrofe retomam o primeiro verso do poema, mas retomam com um detalhe diferente, um deslocamento, apontando um outro começo, inscrevendo um novo começo, como se o poema se construísse neste poder começar de novo, como se cada estrofe fosse, “na dobra da língua”, uma volta diferente ao começo. Podemos ver isso em maior ou menor grau nos poemas, como por exemplo em “Os Peregrinos”, em “Um rio, um nome”, mas destaco aqui o exemplo de “Irmãos”, ressaltando os versos iniciais de cada estrofe: “Somos irmãos da luz”, “Somos irmãos da terra”, “Somos da sombra os nomes”, “Somos irmãos da escuridão”. Ir a este poema também é se demorar nesta repetição: “Somos”. Este poema evoca e afirma uma fraternidade: “Somos irmãos”. Ele fala de um “nós”, como o “nos” em “E nada nos era vedado”, no poema “O eco”. Do ínfimo evoca, e por isso convoca, um coletivo, um coletivo infimamente selvagem, no mínimo, um bando.
Juan de la Cruz, Rumi e Eckart povoam “O lento passo dos nómadas”. Eu arrisco a dizer que todos os passos Do ínfimo são nômades, são todos outros e todos abertos à alteridade, todos passagens, fazendo dos passos, dos impasses, dos saltos e dos abismos começos possíveis de transitar. Do ínfimo é dedicado a todos “que caminham descalços”, aos “que caminham de olhos cerrados”, aos “que caminham de rosto coberto”, aos que “caminham e nunca chegam/ peregrinos de um clarão sem nome” – versos iniciais do poema “Os Peregrinos”. Impossível não nos remeter aqui aos imigrantes neste tempo e à condição precária, frágil e inumana dos milhares e milhares de imigrantes em que toda travessia já é ruína, habitando, sem lugar, este lapso de tempo “entre a promessa e o exílio”: “Mediterrâneo, antes um nome que nos lembrava/ a glória dos deuses e a grandeza dos homens/ hoje um túmulo sem nome nem porquê. ”. São os nomes que não sabemos que escutamos neste livro, nomes que não podem ser lidos nem lembrados como os nomes das cidades das civilizações antigas, porque nem sequer restaram os nomes, como restaram Nimrud, Hatra, Palmira (“Choremos Nimrud, a jóia da Mesopotâmia”; “choremos Hatra, a bela”; “choremos Palmira, em meio de oásis,/ com as suas ruínas adormecidas no tempo”), cidades que podemos chorar as ruínas e velar a morte, ao contrário dos corpos dos quais nem nos chegam os restos. “Das cidades, das vozes” é este poema que dá corpo ao que tem menos corpo do que uma civilização inteira em ruínas. “Das cidades, das vozes” dá rosto à ausência que resta sem corpo. “Das cidades, das vozes” é a boca aberta assombrada quando vemos que as ruínas antigas encontram o amontoado de ruínas destas cidades que, hoje, são um dos maiores palcos de guerra. Se neste palco, outrora, as línguas já se confundiram, hoje sabemos que “[j]á não é a língua, este estranhamento/ que nos revira o estômago, são as imagens/ dos que tudo deixam para trás, rostos alucinados pelo medo. ”.
Em cada nômade solitário podemos ouvir uma multidão, como escutamos mais acima com Joseph K em Diante da Lei de Kafka, como escutamos em “A arqueologia de um rosto” em diálogo com a inscrição, a epígrafe, que dá início ao livro, As anotações de Malte Laurids Brigge de Rilke (que no Brasil se intitula Os cadernos de Malte Laurids Brigge), um rosto que se abre a tantos outros, como podemos escutar o eco de Celan, poeta que fazia dos salmos um apelo, como podemos escutar ainda o eco implícito de Walter Benjamin em todo o livro e, explicitamente, em “Retorno ao silêncio das nuvens”, poema dedicado a “WB”: “sinto-te entranhado no coração, no pensamento/ e sei que jamais me abandonará a tua sombra.”. Podemos ver a sombra de Benjamin, filósofo tão caro à poeta (sobre quem escreveu o livro O Anjo Melancólico), mais viva do que nunca nestes dois versos; dois versos que concentram a grandeza de uma declaração de amor. Nestes tempos, encontramos escritoras e escritores que vão aos mortos como quem vai ao amor. Maria João Cantinho é uma das que segue acompanhada das sombras, como da sombra deste filósofo que nos dizia que é preciso ver a força na fragilidade, que nos dizia que a História que deve ser contada não é a história dos vencedores, mas a história dos vencidos, a história que não cabe nas bandeiras. Essas, não servem mais. O poema “Dobrar o corpo” diz:
andamos descalços, mas continuamos a olhar
para esse céu de plástico e com estrelas mortiças
desenhadas só para alguns, que por detrás delas
se escondem, com suas siglas formidáveis
a tresandar a poder, a feder
hoje é o sapato, irmão, só te serve um
mas amanhã nem as calças te servirão
e o Inverno está à porta. E perguntas? Sonhas?
Poderíamos dizer que “esse céu de plástico e com estrelas mortiças” é uma metáfora para a bandeira da União Europeia, que também não serve mais, como as roupas são nenhuma garantia para aqueles que nada têm. “Dobrar o corpo” é ficar rente ao chão, nu, com pés descalços, da altura do que há de menor, da altura, ou da baixeza, dos vencidos. É por isso que, aqui, um nome se abre a todos, Heiner Müller (“Eu era Hamlet. Estava à beira-mar e falava, com a ressaca, na língua do blábláblá. Atrás de mim, as ruínas da Europa. ”) abre “Os nomes de deus”, em que se lê “Atrás de ti não há deuses nem poemas/ escrevem-se apenas os caminhos da morte,/ sim, já não há vencedores/ apenas vencidos// mas tu não vês,/ estás de costas voltadas/ e falas dos nomes de deus.” Neste livro, um nome se abre a todos, não porque ele fala a língua dos vencidos, mas talvez porque falar a língua dos vencidos é atestar a mudez da língua ao mesmo tempo em que se assombra com ela. Em “Abate diário” lemos: “porque só se pode sonhar/ no lugar de um outro, escrevo/ e ainda assim sucumbo/ numa mudez sem saída/ porque a língua não salva o olhar/ nem a mão, nenhuma mão, pode tocar-te. ”. É diante desta impossibilidade de tocar, desta interdição ao toque, ao contato, que devemos incansavelmente tentar dar corpo aonde o corpo falta, ainda que isso seja impossível. Mas o gesto reside aí: na tentativa de dar corpo aonde ele falta, na tentativa de dar corpo com a falta. “Balada de Czernowitz” é a inscrição nas costas dos mortos. Se um filósofo, Adorno, disse que não é possível escrever um poema após Auschwitz, se um poeta, Drummond, antes disso, falara que o último poeta morrera em 1914 e que todos nós não seríamos senão sobreviventes, e que o poema também termina como sobrevivente, se os primeiros versos desta Balada são “Ter-lhe-á dito que não era legítimo/ escrever poesia nas costas dos mortos de Auschwitz”, o que vemos neste poema é um anjo e, portanto, uma sombra, que “escreve poemas nas costas dos mortos”. O anjo, que segue também amputado, “de asas tolhidas”, “sabe menos do que um filósofo” (“mas tudo sabe do humano e da linguagem/ desse humano que vive para lá da morte”), é ainda mais ignorante, mas escreve ainda assim, para “dar nomes aos mortos”.
Neste livro, um nome se abre a todos porque “o tempo dos nomes” deve ser visto como um começo, um “tempo de um silêncio cheio/ e sem medo. ” (“O ar que as mulheres respiravam”). Do ínfimo é a escuta e o murmúrio de vozes, vozes em diálogo, evocando e convocando as sombras, colocando os mortos na condição de mortos-vivos, de fantasmas, e levando a crer que a nós, vivos, sobreviventes, tão próximos dos mortos, resta o assombro como uma tarefa ética, como um gesto ínfimo e mínimo de ir às sombras do nosso tempo, desdobrando-nos em gestos precários de sobrevivência (“Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida”, como lemos em “Da visão em filigrana”) para nos dobrar por sobre os escombros: “Dobrar o corpo ou a língua, tanto faz/ para que a sombra nos salve/ destes dias” (“Dobrar o corpo”).
Mas, se andamos com as sombras, é porque sabemos que não há redenção, como diz o “Retorno ao silêncio das nuvens”: “procuramos, com o olhar em assombro/ […] e tudo o que descobrimos são as nossas mãos nuas”, porque a lei abate diariamente, porque ainda nos encontramos nos labirintos kafkianos, sem saída, buscando rotas de fuga, saídas possíveis diante dos impasses. Diante da barbárie que se repete, nos encontramos na pergunta aporética: “De que tempo somos, agora/ que a tempestade sopra de novo” (“A Besta”)?
Talvez não saibamos falar de tempos, mas apenas de “sombras de tempos”, como lemos no último poema que dá fim à terceira parte e última de poemas, “O baile final”. Se no começo encontramos uma decisão (“‘Não vou mandar limpá-lo’, decidiu”), no fim encontramos as perguntas: “cairá o palco ou tombarão as sombras? E o pintor, o que fará?”. Poderíamos acrescentar: e o poeta, o que fará?; e o fotógrafo?; e o cineasta? E todos os artistas que entram “a pique no optimismo da técnica”? Perguntas que apontam para uma aporia, um não saber, e, ao mesmo tempo, uma decisão: “importa antes permanecer/ e continuar neste palco”. Permanecer e continuar, como todo sobrevivente. Talvez não saibamos mais falar de tempos, mas daquilo que retorna para nos assombrar, como a presença de Baudelaire, Whitman, Pessoa, Eliot, “ou ainda a miragem de Orfeu”, atemporal como “uma irredutível/ e metafórica despedida” de tempos e de séculos e, talvez, ainda, deste tempo que, porém, não acabará, não chegará ao final como cantaram no fim do século XIX anunciando o XX, como cantaram no início do XX, durante o XX, no fim do XX, no início do XXI, como ainda cantam no XXI. Não à toa o espectro de Kafka paira ainda hoje, e com ele sabemos que o dia do Juízo Final é todo dia. Logo, este final que ainda cantamos, não vai chegar. E talvez precisemos nos perguntar não o que faremos ou “[o] que virá depois da música”, mas o que faremos se a música não acabar. E ela nunca acaba. Só na alteridade resta um pouco de fim. E de sim.
Antes do fim Do ínfimo, encontramos a “Caligrafia da Solidão”. Localizando-se fora do índice, colocada fora (dos poemas, do verso, do limite do livro de poemas) e por isso exposta (aos poemas, ao verso, ao limite do livro de poemas), a Parte II deste livro poderia ser lida como uma parte fora. E é enquanto parte-fora que ela encontra a outra parte, fazendo do livro este limiar em que a primeira parte pode ser vista como uma parte-fora em relação à segunda e vice-versa, só havendo partes-fora ou uma permuta de lugar que só existe se as partes estiverem em relação, só existindo o dentro se estiver em relação com o fora, só existindo, pois, se estiver em relação com. Esta parte poderia ser lida como uma passagem à prosa. Os versos dando passo à prosa. Mas poderia ser lida também como um poema, havendo uma potência de verso na prosa. Mas poderia ser lida também como um diálogo com Rumi, que comparece como epígrafe. Mas poderia ser lida também como uma dedicatória a Vicente Franz Cecim, ou como uma carta de amor ao poeta, tal como o poema a Benjamin. Mas poderia ser lida também como uma narrativa. Mas a outra parte, em versos, poderia ser lida também como uma narrativa. Desconfio, inclusive, que eu tenha lido os poemas em verso como uma narrativa. Enfim, Do ínfimo permite este encontro. Sem me demorar mais, após o meu lento passo pelos poemas, deixo aqui apenas um mínimo caminho de abertura para o mundo de uma escrita que se traça de mãos dadas com Vicente Franz Cecim. Esta prosa acontece deste encontro com o outro, com outros versos, a poesia do poeta paraense. Em entrevista, a poeta portuguesa disse: “Tenho uma forte relação com o Brasil, por exemplo, mas repara, é uma parte ínfima do Brasil, mais ligada ao Rio de Janeiro e à Amazónia (e não é toda, mas Belém do Pará). ”. Declara-se aí a forte relação da poeta portuguesa com esta parte grandiosa e ínfima do Brasil, a parte da Amazónia em Belém do Pará, e com esta parte ínfima e grandiosa que é o Rio de Janeiro. Declara-se que é uma poeta em diálogo, em relação com, em encontro com o ínfimo grandioso e com a grandeza no ínfimo. “Caligrafia da Solidão” se traça enquanto rastro de um encontro. Neste gesto, só há passagem. O resto é rosto, para além do começo e do fim, e antes do começo e do fim.
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Danielle Magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. É graduada em História (UFF), mestra em Teoria Literária (UFRJ) e atualmente cursa o doutorado também em Teoria Literária (UFRJ), dedicando-se ao estudo sobre poesia brasileira contemporânea. Colabora com a Revista Caliban (Portugal) e já publicou ensaios, resenhas e poemas em revistas como Cult, Mallarmargens, Polichinello, Plástico Bolha, Pittacos e Germina. Edita, com Maíra Ferreira, a revista Oceânica (http://revistaoceanica.blogspot.com.br/ ). Lançou o megamíni “Quando o céu cair” (7Letras) em 2016.