Não há nenhuma existência constante, nem do nosso ser, nem do ser dos objectos. Nós, os nossos juízos e todas as coisas mortais vamos incessantemente fluindo e rolando. Não podemos aceder ao ser, porque toda a natureza humana está sempre no meio, entre o nascimento e a morte, e apenas dá de si mesma uma obscura aparência ou sombra, e uma ideia frouxa e incerta. E se por acaso fixarmos o nosso espírito no conhecimento do seu ser, será tal e qual como querer agarrar água.
Michel de Montaigne, Ensaios, II, XII, 639[1]
Tomar entre mãos uma apresentação sintética de um autor como Michel de Montaigne é um acto corajoso, sobretudo se pensarmos na bibliografia secundária existente, para além da sua obra. Recentemente, a tradução da biografia de Sefan Zweig sobre o autor (Assírio & Alvim, 2016) veio relançar o interesse sobre a sua obra em Portugal. Já em 1992, Eduardo Lourenço publicara um texto, «Montaigne ou la vie écrite»[2], que seria mais tarde traduzido e publicado em Heterodoxias (Fundação Calouste Gulbenkian, 2012). Posteriormente, Cristina Almeida Ribeiro[3] escreveria um artigo sobre este gigante do pensamento e Rui Bertrand Romão a introdução da tradução portuguesa de Ensaios — Antologia (Relógio d’Água, 1998). Se, por um lado, Montaigne inaugurou o ensaio enquanto género literário, o que lhe confere, enquanto autor, um carácter inédito e pioneiro deste género, provocando a irritação de Pascal e suscitando a admiração de filósofos como Nietzsche; por outro, o contexto da sua obra e as condições históricas que a circunstanciaram é tão atribulado quão fascinante, o que faz vacilar qualquer investigador.

Tal não foi o caso de Clara Crabbé Rocha, já conhecida pela sua investigação sobre literatura autobiográfica, tendo-se consagrado a autores como Miguel Torga, Mário de Sá-Carneiro, António Nobre, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill, entre outros, devendo-se assinalar a sua obra Máscaras de Narciso — Estudos sobre a Literatura Autobiográfica em Portugal (Almedina, 1992).
A recepção da obra de Montaigne em Portugal é ou tem sido mais devedora à filosofia do que à literatura, precisamente por se ter valorizado mais o seu pensamento e a sua relação com a génese da filosofia cartesiana. Todavia, não poderíamos pensar as Meditações Cartesianas nem os Ensaios de Francis Bacon (1597), bem como os ensaios de Locke, de Montesquieu, Voltaire e tantos outros, que se lhe seguiriam, contrariando a forma do tratado medieval na filosofia.
A escrita irrepreensível de Clara Rocha reflecte bem o ágil modo como se desloca no universo de Montaigne, tanto no que respeita à sua vida quanto à sua obra, razão pela qual lhe foi justamente atribuído o Prémio Literário Jacinto Prado Coelho, pela APCL (Associação Portuguesa de Críticos Literários). Para tal, recorreu a uma pesquisa intensa, não apenas dos textos autobiográficos do autor, como da bibliografia secundária imensa. A autora move-se sobretudo em busca do equilíbrio (difícil) entre os aspectos biográficos e a obra do autor, o que constitui sempre para o investigador o maior «perigo» no qual incorre. A tal ponto se cruzam as águas da vida e as da escrita em Montaigne, que só é possível compreender a inquietação do seu espírito mergulhando nos dois planos distintos e procurando neles a matriz de um pensamento único e de um género que viria a ocupar «um lugar central na epistéme moderna», como o afirma Clara Rocha (p. 9).
Apreendemos o carácter inaugural do seu pensamento quando percebemos o modo como o pensador afirma, de forma inédita, essa possibilidade da construção da subjectividade e, nesse sentido, a autora traça a sua genealogia na época moderna, tomando Montaigne como o seu mais eminente representante, corroborando a investigação de Charles Taylor[4], citada pela própria. A erosão da experiência exterior e a redução do sujeito, por meio do conceito operante da dúvida céptica, a qual Descartes tomaria como o ponto de partida para a construção do seu sistema filosófico, precisamente pela sua refutação, permite a mais revolucionária descoberta do mundo moderno na filosofia: a descoberta do Eu. E, ainda que a pesquisa dessa interioridade não tivesse sido o propósito inicial dos Essais, como nos esclarece a autora, todavia é nessa obra que o reconhecimento do Eu, e a consequente descoberta da subjectividade, se revela como o objecto central do livro. É em particular no Livro II que convergem o auto-retrato e a auto-biografia. Citando o próprio Montaigne, a autora fala de uma «consubstancialidade entre o eu e a sua monumental empresa autográfica» (p. 13).

Michel de Montaigne nasceu a 28 de Fevereiro de 1533, no castelo senhorial de Montaigne, em Périgord, situado na região da Aquitânia e propriedade da sua família, que enriquecera com o comércio de vinhos, de peixe salgado e de pastel (planta utilizada na tinturaria dos tecidos). Por decisão paterna foi enviado, ainda criança de berço, para uma aldeia vizinha e entregue a uma ama para ser criado num clima de austeridade e de frugalidade, em relação directa com o povo. Mais tarde, regressa ao castelo de Montaigne, onde terá uma educação de acordo com os princípios da pedagogia humanista que era defendida por Erasmo de Roterdão, tendo aprendido, para além das disciplinas habituais, o latim e o alemão. Ainda que exigente, a sua educação visava a formação de um espírito sólido e livre, bem ao gosto do humanismo da época. Entre 1539 e 1546 Montaigne prosseguiu a sua educação em Bordéus e ingressou no Colégio de Guiena, cujo director era o célebre humanista português André Gouveia. Nessa instituição, não só estudou com os mais renomados humanistas da sua época, como se iniciou na leitura dos clássicos, como nos reporta Clara Rocha.
Tendo terminado o curso de Direito e sido nomeado Conselheiro da Cour des Aides de Périgueux, entrou para o Parlamento de Bordéus em 1557. Porém, é em 1558 que se dá um encontro, que foi decisivo para Montaigne, com Etienne de La Boétie, o qual era, além de magistrado, autor da obra Discurso da Servidão Voluntária (que foi redigida em 1549 e publicada por Montaigne em 1574). Essa obra de filosofia política questiona, não apenas as razões, como também os princípios da tirania enquanto sistema político e impressionou vivamente Montaigne, tanto mais que La Boétie não teria mais do que 18 anos, à data em que redigiu esse texto. Esta obra mantém-se extraordinariamente actual, na medida em que, ao apontar as razões pelas quais os povos se submetem à tirania, diz que estas causas se devem aos «estratagemas ou drogueries que desde a Antiguidade os tiranos usaram para anestesiar a vontade do povo (espectáculos e entretenimentos de toda a sorte); a ambição e a cupidez que movem os cortesãos, menos livres ainda que o povo oprimido; e sobretudo o próprio hábito da sujeição» (p. 19). A amizade profunda entre estes dois homens fortaleceu-se ao longo de quatro anos de diálogo e de partilha de ideias, numa relação recíproca e que levaria Michel de Montaigne a escrever o quão perfeita e jubilosa era essa amizade, no Livro I, XXVII: «Tão fortemente emparelhadas andaram as nossas almas e se consideraram uma à outra com um afecto tão ardente, com igual afecto pondo-se mutuamente a descoberto até ao imo das entranhas, que não só eu lhe conhecia a alma tão bem como a minha, mas, decerto, até me fiaria mais nele do que em mim próprio.»[5]. Foi em 1563, com a idade de 32 anos, que La Boétie adoeceu gravemente e veio a morrer em casa de um cunhado de Montaigne. Porém, nos seus últimos dias de vida, pediu ao seu amigo que permanecesse junto dele e legou-lhe a sua biblioteca e os seus livros.
Clara Rocha dá-nos conta, e com grande rigor, do contexto histórico e social em que viveu Montaigne, relatando-nos a turbulência de uma época fustigada por uma guerra religiosa, entre protestantes e católicos, a partir de 1562, em que eclodiram sucessivas guerras civis até ao ano de 1598, data em que foi finalmente assinado o Édito de Nantes por Henrique IV, e em que ficaram lavrados os direitos religiosos e jurídicos dos huguenotes em França. Em 1562 Montaigne havia prestado juramento de fidelidade à religião católica para poder ser admitido no Parlamento de Paris, razão pela qual acompanhou o exército real e participou em missões específicas. Tal experiência de devastação e horror foi descrita por si nos Ensaios. Também ela deve ter contribuído para uma visão desencantada da irremediável natureza humana e para a afirmação do seu cepticismo, como um «vedor» da sua própria época, marcada pelo desalento, pela ruína do ideal do humanismo e consequente afundamento no relativismo e no cepticismo exacerbado.
Em 1570, já casado e pai de uma filha de nome Léonor, a única que sobreviveu à morte das seis filhas que teve de Françoise de la Chassaigne, Montaigne renunciou ao cargo de conselheiro no Parlamento de Paris e retirou-se para o seu castelo, para se dedicar «ao otium e ao estudo.» (p. 24). É dessa época que data a edição dos textos de La Boétie e mandou, então, pintar nas paredes do seu gabinete uma inscrição em latim, na qual assinalava o seu retiro da vida pública. É também desse período de reclusão na sua propriedade que datam as suas leituras dos clássicos, em particular Platão, Aristóteles, Putarco, Horácio, Lucrécio, Ovídio, Cícero, Catulo e muitos outros, que lia indisciplinadamente. Não apenas filósofos e poetas, mas também os historiadores e, ainda, os seus contemporâneos. Não era um leitor sistemático, lendo ao sabor do momento e impelido pelo prazer, não só da leitura, como o próprio Eduardo Lourenço havia reconhecido no seu ensaio sobre o autor, mas também pelo prazer da escrita[6], escolhendo aqui e ali fragmentos, anotando as suas leituras. E foi no retiro da torre do seu castelo, onde possuía uma imensa biblioteca, que Montaigne iniciou a redacção dos ensaios, citando profusamente os seus autores clássicos de eleição, em gesto de reconhecimento da dívida que tinha para com os seus autores e, igualmente, como uma forma de esquecer a irremediável solidão que lhe causara a morte de La Boétie, a propósito da qual ele confessa no Livro I: «Me parece mais não ser agora que meio.» (p. 26).
O estilo da sua escrita e a composição dos Ensaios era inédito na sua época, em vários aspectos que se prendem com a arquitectura da sua obra, com a escolha da língua, com o uso de fragmentos e citações, que eram incorporados no texto, com a não coincidência dos títulos com os temas, etc. Optou por não escrever em latim como o faziam os eruditos do seu tempo, mas antes em francês e reservando o latim para as citações. É na língua materna que abriga o seu pensamento e encontra a sua respiração e o seu tom singular, usando uma linguagem directa e coloquial e alternando entre a densidade do discurso filosófico e a escrita literária, recusando o estilo do tratado e entrelaçando citações e referências, lançando mão aos seus autores favoritos. Clara Rocha não se cinge aqui apenas aos aspectos biográficos, mas perscruta os elos secretos entre a vida aventurosa do homem e a sua obra, procurando compreender a sua época e dar a conhecer ao leitor a configuração de um contexto que cruza a relação entre os factos e as circunstâncias da sua vida e o modo como essa amálgama convergiu no seu pensamento e na obra. Assim, segue-lhe no encalço e estabelece ligações entre as viagens de Montaigne e o seu conhecimento privilegiado do mundo pelas mais diversas razões. São as guerras e o horror da intolerância religiosa, a instabilidade política, as viagens e as suas missões, o exercício da política e a sua frequência da corte, factos que lhe deram a conhecer os meandros do poder e da natureza humana. Foi esse o contexto que lhe moldou e enformou o pensamento e a escrita, numa variabilidade de temas que nela se reflectem e o modo como eles são glosados, na sua obra, conferem-lhe um ritmo heterogéneo, tanto na sua linguagem quanto na arquitectura da sua obra. É, aliás, o próprio Montaigne quem o confessa: «Os nomes dos meus capítulos nem sempre abrangem a sua matéria; frequentes vezes apenas a denotam por alguma particularidade marcante (…). Apraz-me a maneira de avançar na poesia, aos saltos e aos pinotes.» (p. 34). Um outro aspecto assaz interessante é a sua «desobediência» em relação à cronologia dos factos, tese defendida por vários estudiosos da sua obra e que Clara Rocha corrobora aqui. A autora ressalta, a este propósito, uma viragem significativa do seu pensamento e que coincide com a leitura de Pirro, por volta de 1576, o primeiro dos filósofos cépticos gregos, através da obra Hipotiposes Pirrónicas, de Sexto Empírico. Foi após essa leitura que Montaigne escreveu a «Apologia de Raimond Sebond», um dos mais conhecidos e comentados textos dos Ensaios. É justamente nesse texto que Montaigne questiona os limites da razão humana e põe em causa a possibilidade do conhecimento. E é também esse o texto que mais acendeu o debate epistemológico do seu tempo, transformando a dúvida num conceito tão radical e erosivo que Descartes cedo percebeu a sua pregnância conceptual e o operacionalizou, transformando-o na «pedra de toque» do seu pensamento e ancorando na «dúvida» a raiz do cogito e do seu sistema filosófico.
Clara Rocha confronta diversas interpretações e leituras de Montaigne, ao longo de um estudo que, apesar de ser sintético, não descura nem o rigor nem a profundidade dos temas. É nessa travessia aventurosa e turbulenta, entre a vida de um homem mundano e o seu pensamento genial e singular que a autora se move, contribuindo para um estudo mais sistemático deste autor em Portugal e que constituirá doravante uma referência na investigação do pensamento montaigniano. A leitura de Montaigne e o seu conhecimento, que Clara Rocha expõe de forma sintética, obriga-nos a repensar a nossa própria época, que tanto nos aproxima do cepticismo de Montaigne e das razões que o terão levado à sua radicalidade: as guerras civis, a intolerância e a fragilidade dos laços políticos e sociais de uma Europa dividida pela religião, essa paisagem que nós pensáramos nunca mais voltar a ver e que ressurge novamente no nosso horizonte como um intenso clarão.
[1] Apud Clara Rocha, O Essencial sobre Michel de Montaigne, Lisboa, INCM, 2015, p. 12 (tradução de Clara Rocha).
[2] Lourenço, Eduardo e Botineau, Pierre, Montaigne 1533–1592, Bordéus, L’Escampette, 1992.
[3] Ribeiro, Cristina Almeida, «Montaigne, entre o auto-retrato e a autobiografia», in Românica, 3, Lisboa, 1994.
[4] Sources of the self, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1989.
[5] Ensaios — Antologia, introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão, Lisboa, Relógio d’Água, Lisboa, 1998, p. 196.
[6] Heterodoxias, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 2012,, p. 471.