Luís Miguel Nava ou do corpo como inscrição radical

Há quem de quanto escreve faça túneis através dos quais se move sem ser visto. Quando, por exemplo, eu digo ou escrevo eu ou ele, qualquer dessas palavras parte em busca de alguém a quem se ajuste. São palavras que sufocam, que boiam à deriva até encontrarem algo com que possam respirar.

Luís Miguel Nava, “Eu, Ele”, in Rebentação (Nava, 2002, p. 103).

Ainda hoje está por esclarecer o facto de Luís Miguel Nava ser tão pouco conhecido pelo grande público, apesar da sua imensa qualidade literária. Mesmo num universo de leitores médios de poesia, o seu nome suscita frequentemente a perplexidade. Somente os leitores de poesia portuguesa atentos conhecem Luís Miguel Nava e, curiosamente, há um grande interesse por parte dos leitores brasileiros, uma recepção ávida, como a que se fez sentir pela literatura de outros autores de classificação difícil, como é o caso de Maria Gabriela Llansol, como um exemplo concreto.

Luís Miguel Nava nasceu em 1957 e desapareceu precocemente em 1995, cinco meses após a publicação de Vulcões, sem que tivesse saído um único artigo crítico sobre o seu livro. As causas desta indiferença podem ser múltiplas, mas, provavelmente, a principal razão terá sido a incapacidade para absorver uma obra estranha aos padrões da poesia portuguesa, radical, quer quanto à sua forma quanto ao conteúdo. Como o refere Gastão Cruz (Cruz, Dos Relâmpagos às Trevas na Poesia de Luís Miguel Nava, 2002, p. 191), Luís Miguel Nava só pode ser relembrado como “um ser paradigmaticamente livre” e desmistificador, em todas as acepções: transgressivo, anti-conservador e crítico. Ao criticar a moralidade vazia e adoptar uma atitude sistemática e analítica perante o real, não admira que tenha levado essa atitude a uma radicalização, da qual a expressão mais acabada terá sido a de assumir o corpo (na sua nudez e totalidade abrangente) como o centro da sua obra, emblema de uma inscrição do real, como corpo dilacerado, matriz onde se inscreve a fragmentação da verdade, da experiência e da vivência mundana: “Por dentro do meu corpo, onde é possível separar do sangue os vários órgãos, a quem destes o contemple é dado vê-lo embravecer contra as vitrines. Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras (…)” (Nava, 2002, p. 143). Numa ousadia ainda pouco usual na poesia portuguesa, o autor transformou essa descida aos abismos viscerais numa via de conhecimento que se desdobra e opera no interior do seu projeto poético, com toda a matéria verbal que ele implica, nas suas mais diversas e concretas configurações, evidenciando uma poética desconcertante e, muitas vezes, enigmática. Além de um jogo metafórico peculiar, note-se a importância do esbatimento das clássicas dicotomias entre sentidos/razão, abstracto/sensível, sensorial/espiritual.

O seu trabalho de linguagem é marcado por um arrojo extraordinário e inesperado, que lhe confere, não apenas um carácter inédito, como também um dinamismo intenso e uma vitalidade muito expressiva. Neste sentido, nessa dimensão que é aqui exaltada, como um trabalho sobre o corpo alegórico, assim distendido, em toda a sua extensão, como pura materialidade, acaba por revestir uma dimensão trágica, infinitamente solitária e vulnerável, que se vai acentuando ao longo da sua obra, corpo que é simultaneamente “a alma aberta como uma ferida,/ao longo da memória, onde se fundem/o tímpano e a pupila.” (Nava, 2002, p. 221).

O autor estreou-se em 1974, com a obra Perdão da Puberdade, mas acabou por destruir tudo o que escrevera, após conhecer Eugénio de Andrade e a sua poesia. Regressa em 1979, com o livro de poesia Películas (Moraes), que foi prêmio de Revelação da A.P.E.. Posteriormente, publicou A Inércia da Deserção (& etc., 1981), Como Alguém Disse (Contexto, 1982), Rebentação (& etc., 1984), Poemas (reedição conjunta de livros anteriores, Limiar, 1987), O Céu sob as Entranhas (Limiar, 1989) e Vulcão (Quetzal, 1994). Foi, ainda, autor de três obras de ensaio, que foram posteriormente reunidas numa edição da Assírio & Alvim, publicada em 2004, e organizou uma Antologia de Poesia Portuguesa – 1960/1990.

Sete anos após a trágica morte, a sua obra foi reunida pelos amigos mais próximos e a editora D. Quixote resolveu editá-lo, compilando uma obra que marcou o panorama poético português, nas décadas de 80 e 90. Aliando uma forte expressividade, que lhe advém da sua criatividade metafórica, a uma tendência narrativa da qual resultam poemas em prosa, o autor oscila entre o plano do concreto – comparando o corpo e os órgãos humanos a órgãos funcionais, utilitários – e o plano do abstracto, revelando a sua poesia uma concentração elevadíssima, abrindo-se a uma leitura que suscita contradição e que é, também por isso, inesgotável. Ricardo Vasconcelos, na sua excelente obra sobre Nava[1], refere essa dimensão do excesso que se revela, não apenas na matéria verbal utilizada, como também na própria organização sintática dos poemas (Vasconcelos, 2005, p. 43). Luís Miguel Nava refere esse procedimento, de uma forma clara, constituindo assim uma meta-poética incontornável, no seu livro Rebentação. Em “Os Nós da Escrita” (Nava, 2002, p. 104), fala da sua escrita como um acto de “tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.” Este «sufoco da caligrafia» é, no entanto, rompido pelo momento em que as “palavras são cuspidas, saem aos borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.”. Desse balbuciar do sentido, que se instaura no momento da apneia, mas que é restabelecido de forma violenta e viva, misturada com o sangue e o suor, é que se alimenta a fragmentação do discurso poético, desconstruindo uma sintaxe tradicional e instaurando uma outra ordem, toda ela explosiva, detonando o óbvio. Mas esse movimento, longe do afastamento do mundo, é pelo contrário, um elo fortíssimo com ele, como o diz Nava em “Introdução”:

Atei uma ligadura ao mundo.

Seguindo uma estratégia diferente, há quem o aparafuse, ajoelhando-se na terra, ou abra nele um olho, uma pupila.

Por cima dele o céu é elástico.

Elástico, adesivo, eis dois atributos que, ao dar por acabado o livro de que este texto pode, entre outros, ser a introdução, mais me fascinam.

A própria alma é elástica: podemos, assentando um dedo sobre a sua superfície e pressionando-a, levá-la a tocar nas coisas mais inesperadas. (Nava, 2002, p. 106)

Esta ideia de uma «alma elástica» e que, como diz Vasconcelos, é “levada às situações mais extremas” (Vasconcelos, 2005, p. 44), é uma das características mais impressivas da sua poética, atestando a dimensão excessiva do poema, de supor a “alma” como uma possibilidade de abertura ao inesperado, o que sobra ou se desfaz a partir dos nós, não só da escrita, como da própria realidade.

Eduardo Prado Coelho falava também de uma forte componente “alucinatória” da poesia de Nava, colocando-o mais próximo da poesia dos anos 60 e de poetas como Herberto Helder e Luiza Neto Jorge do que outros, mais próximos de si (da geração de 70). Eu referiria, ainda, uma proximidade com algum do universo de Al Berto. Por outro lado, como nota Gastão Cruz, essa vertente combina-se com a depuração e o rigor dos artífices consumados (Cruz, Dos Relâmpagos às Trevas na Poesia de Luís Miguel Nava, 2002, p. 187), como sejam o caso de Carlos de Oliveira (sobretudo de Micropaisagem) e de Eugénio de Andrade (de Ostinato Rigore). A conjugação, entre uma concentração despojada, “a aridez da linguagem” (Nava, 2002, p. 168), tão procurada na sua poesia, e o seu caráter alucinatório é, sem dúvida, o traço mais impressivo e original da sua obra, que lhe confere a tonalidade neo-expressionista e o destaca dos poetas da sua época, transformando-o num caso excepcional. Carlos Mendes de Sousa, no seu ensaio “A Coroação das Vísceras”, publicado no primeiro número da revista Relâmpago (Sousa, 1997, p. 48), fala dessa estratégia de Nava, a de uma “fala árida”, a partir de uma passagem do poema “Céu Árido”[2], onde o ensaísta distingue “dois procedimentos: o enrolar do novelo e o tornar visivelmente áspera a dicção por uma acumulação de nós (por exemplo o texto saturado de “ques” relativos”. Todo este embrulhar da sintaxe dificulta o trabalho do leitor, semeando a leitura de obstáculos. Por outro lado, este processo obedece a uma lógica de estratégia que é o assumir de um tom analítico que obrigue a uma apresentação da realidade de uma forma rigorosa.

Nas primeiras obras do autor, a luminosidade e a sua relação intensa com a imagem erótica eram aspectos peculiares, como quando o poeta diz, em Películas, “Através da Nudez”, p. 46: “Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos/ encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os astros.” Esta imagem recorrente, a do rapaz, símbolo do desejo homoerótico, sempre associada à mais imagem deflagradora, reaparece em “Sketch”, p. 49: “Vem o rapaz à página, é o seu sketch, a luz às vezes é de tal intensidade que a página fica em branco (…)”, revelando o amor/desejo como apresentação luminosa, mas que se vai dissipando nos restantes livros, obscurecendo-se, assim, o seu universo imagético[3].

Nos seus primeiros livros, Luís Miguel Nava suporta a sua poética numa rememoração apresentada pela imagem do mar, sobretudo nas obras Películas, A Inércia da Deserção, “Como alguém disse” (agrupados sob o título Onde à nudez) e Rebentação. Tal como Rosa Maria Martelo faz ressaltar (Martelo, 1997), o mar ou a paisagem marítima concentra em si a imagem da desmesura, apresentando metaforicamente a ideia do sublime kantiano, mais ou menos fácil de reconhecer pelo excesso que se configura nas paisagens evocadas pelo poeta (vulcões, campos de relâmpagos, tempestades, abismos, rebentações). Todas essas metáforas remetem para a infinitude da idéia que nelas se apresenta, patenteando a inadequação que o poeta encontrava na escrita. O lugar do “absolutamente grande”, o nó da sua sublimidade vai encontrar precisamente o fulcro no corpo e nele se fixa como a sua apresentação; no corpo, nas vísceras, na pele.

Ao longo do seu percurso poético, a tensão erótica vai abandonando o seu aspecto apolíneo, intrínseco nas primeiras obras, transformando-se numa paisagem baconiana e visceral, analisada de forma notável por Carlos Mendes de Sousa (Sousa, 1997), bem como no prefácio de Fernando Pinto de Amaral à obra completa de Luís Miguel Nava. De salientar o poema “Matadouro”, em que essa ideia se apresenta de uma forma impressiva:

Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando. (Nava, 2002, p. 181)

A exaltação das vísceras e do sangue atingem aqui um paroxismo que transforma o poema numa imagem deflagradora, em absoluto, num exercício de levar ao limite a tensão da hipérbole:

(…) Só num espelho assim saído há pouco das entranhas dum ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem (…) A luz que das vísceras emana é a de deus, aquela que, por uma excessiva dose de trevas misturada, mais do que qualquer outra se aproxima de deus, que resplandece nas carcaças em costelas onde é fácil pressentir as incipientes asas de algum anjo (Ibidem).

Tal como nas obras de Francis Bacon, em que a carne e as vísceras se expõem ao olhar, apresentando a morte como visão derradeira e alegórica, o corpo é visto, não como vivo, mas como cadáver que se revela na mais brutal aniquilação, também na poesia de L.M. Nava esse desejo é ostensivo, como quando o poeta diz: “Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras”. Esse impulso procura, paradoxalmente, reinvestir o corpo e a morte de um sentido, que lhe é conferido pela luz íntima que dele, corpo mortificado, nasce, como fonte de um obscuro e críptico sentido: a dionisíaca luz das trevas. Cada pedaço aniquilado, o corpo levado à sua fragmentação, remete para a ideia de uma petrificação do seu sentido, inscrito no poema. Este é o “lugar” de consumação e redenção dessa petrificação.

Esta espécie de desassossego que Luís Miguel Nava nos provoca, um verdadeiro arrepio perante a brutalidade das metáforas e o excesso que nelas deflagra, é um atributo inalienável da grande poesia, apelando, não a uma serenidade, por parte do leitor, mas a uma verdadeira suspensão perante o que se entende ser (ou não se entende) a função da verdadeira poesia. É uma obra inquietante e em que a incidência do olhar se faz verticalmente e sem tréguas. Trata-se de um olhar que reflecte uma fidelidade e um amor às próprias coisas, à vida e ao detalhe, à finitude e a tudo aquilo que não tem lugar na poesia mais tradicional, presa ainda da miragem do belo e do orgânico.

Obras Citadas

Amaral, F. P. (2002). As Cicatrizes da Lava. Em L. M. Nava, Poesia Completa (1979 – 1994) (pp. pp. 19-31). Lisboa: D.Quixote.

Cruz, G. (1999). Clarões, Deflagrações, Rebentações. Em G. Cruz, A Poesia Portuguesa Hoje (pp. 191-193). Lisboa: Relógio d’Água.

Cruz, G. (1999). O Corpo Vulnerável. Em G. Cruz, A Poesia Portuguesa Hoje (pp. pp. 186-188). Lisboa: Relógio d’Água.

Cruz, G. (2002). Dos Relâmpagos às Trevas na Poesia de Luís Miguel Nava. Em L. M. Nava, Poesia Completa (1979 – 1994) (pp. 281 – 290). Lisboa: D. Quixote.

Martelo, R. M. (Outubro de 1997). “O Mar no Conjuntivo” e a Fulguração Sublime – Nexos a partir da Poesia da Poesia de Luís Miguel Nava. Relâmpago, pp. 11-20.

Nava, L. M. (2002). Poesia Completa (1979 – 1994). Lisboa: D. Quixote.

Sousa, C. M. (Outubro de 1997). A Coroação das Vísceras. Relâmpago.

Vasconcelos, R. (2005). Campo de Relâmpagos – leituras do excesso na poesia de Luís Miguel Nava. Lisboa: Assírio & Alvim.


[1] Esta obra resultou da sua tese de doutoramento.

[2] “A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à da roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.”

[3] Ideia que é observada justamente por Gastão Cruz no posfácio à obra completa do poeta.

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