Para onde nos leva esta Europa?

A imagem é forte. O buraco da Europa tem ao fundo o Parlamento grego. É difícil conservar a lucidez, no olho do furacão. Durante vários dias, semanas, fomos fustigados com as imagens dos pensionistas desesperados à porta dos bancos, provocando a indignação em todo o mundo.

pensionista desesperado

O pânico tomou conta dos gregos, que vivem sem saber como serão os próximos meses ou, até, os próximos anos. Ainda hoje, o fundador do Zoo afirmou que os animais do jardim zoológico vivem uma ameaça real: a de morrerem à fome, pois os bancos fechados não permitem comprar a comida aos animais. Tudo se desenrola diante do nosso olhar como uma catástrofe crescente, desintegrando a Grécia, perante a nossa impotência, já que os nossos políticos, aqueles que poderiam ter impedido a catástrofe, alinharam pelo mesmo diapasão: o eixo germânico Schauble-Merkel.

O que fundou um dia a ideia da União Europeia e dos seus estados constituintes tinha um nome e uma correspondência com o que de melhor a Europa significava: a restauração dos povos a seguir à guerra, a implantação de valores democráticos e uma ideologia onde a solidariedade tinha um lugar privilegiado, em que o Estado Social representava o seu melhor lado. Longe estamos do tempo de Jacques Delors, esse aristocrata do pensamento político, cuja vida se norteou pelo ideal da União Europeia e da solidariedade dos povos. Seria impensável o que acontece hoje com os refugiados e a tragédias diárias do Mediterrâneo. Os princípios sobre os quais assentavam essa união eram dignos, louváveis e, por que não dizê-lo, belos. Traziam o brilho de uma racionalidade que encontrou o seu sentido na reconstrução e na união dos países.

Os anos dourados da Europa, na década de 80, faziam prever um crescimento económico e uma estabilidade política, a que poucos países (fora da Europa) poderiam aspirar, como uma promessa sólida. Todavia, no dealbar do século XXI, nomeadamente a partir de 2008, tudo começou a mudar. Lenta (ou talvez nem tanto), mas inexoravelmente. A austeridade foi imposta como uma forma de tratamento que se julgava, nessa altura, eficaz. Foram precisos poucos anos para perceber o desastre que a austeridade provocou em toda a Europa  e alguns países, como a Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e Itália foram particularmente sensíveis aos efeitos da austeridade. Parece que há uma certa “cegueira”, em certos discursos, que não vêem o que é óbvio, o efeito de contaminação do colapso da Grécia sobre o resto da União Europeia. A proposta, muito racional, da “instituição de um sistema de solidariedade social europeu, com provisão a partir de um orçamento europeu significativo” que André Barata defende no seu artigo do jornal Público, parece ser a única forma de dar continuidade a um projecto como este. De resto, vale a pena ler o seu artigo, para compreendermos que a crise europeia é, sobretudo, uma crise que atinge o projecto europeu na sua racionalidade intrínseca.

tsipras deprimidoAssistimos, hoje, não apenas ao desmoronamento da economia dos países mais fragilizados, como também ao arruinar da sua estabilidade política, como a mais pesada factura da austeridade. Olhar hoje para o governo grego, onde vemos agora Tsipras (há dois anos um “profeta da esquerda” em toda a Europa) isolado e, até, acusado de traição para com o seu povo, provoca uma consternação profunda, pois põe em causa todo o optimismo que havia até aqui, na crença de se conseguir mudar o paradigma político da União Europeia. Sejamos mais claros. O projecto do Syriza e do governo grego é um projecto racional, coerente e que traz consigo essa mudança de paradigma[1], no modo de olharmos para a Europa.

Se a crise se instalou pelo lado mais frágil (o da economia e do seu colapso), todavia, ela vem mostrar-nos a falência das políticas e das teorias económicas até aqui aplicadas e o excessivo surgimento de “anomalias”, nesse quadro, sugere uma mudança de paradigma ou de modelo para o funcionamento e aplicação das teorias. Não é apenas a Grécia, portanto, o que está aqui em causa, mas o modo como iremos sendo progressivamente afectados e o projecto europeu se arruinará, se nada for feito para o salvar. Defendo, como André Barata e contrariamente aos que se batem pela saída da UE (e isso será hoje possível?), a necessidade de repensar a situação e a actual crise da Europa permite-nos essa reflexão. Com urgência, desmistificando, e não tratando as “anomalias” como minudências, mas antes como sinais claros e inequívocos perante os quais devemos estar alerta, antes que tudo seja devastado.

Não imagino, sequer, o que seria desta Europa se Putin e a Rússia estivessem numa condição de solidez financeira. Assim, o eixo germânico não tem um inimigo que trave a sua impunidade e a humilhação que tem levado a cabo sobre a Grécia. E é na figura de Tsipras que essa impotência extrema se manifesta. O que será a Grécia amanhã, depois de mudar todos os ministros que votaram contra o acordo? O que será de um partido como o Syriza, que insuflou um novo ânimo no desejo de mudar o paradigma político e que esteve tão perto? Já nem pergunto o que será da Grécia, tão humilhada e maltratada, mas pergunto: “para onde nos leva esta Europa”? Não devíamos, ao invés de clamar pela saída do Euro e do seu sistema, lembrarmo-nos que não possuímos essa autonomia económica necessária para tal, e repensar seriamente sobre o futuro do modelo da UE? Mas isso implica retirarmos dos centros de decisão certas figuras que se pautam pela insanidade e elegermos (sim, eles são eleitos pelo Parlamento, não podemos esquecermo-nos) pessoas que estejam cientes dessa imensa responsabilidade que, menos que económica, deve ser ética e racional. Em nome dos valores que sempre nortearam a Europa.

Estaremos todos nós acorrentados, incapazes de decifrar os sinais da catástrofe e conduzidos por cegos, como na profética “parábola dos cegos” de Pieter Bruegel, baseada numa passagem do Evangelho?

Se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova.

Mateus 15, 14

Pieter Brueghel,O Velho, (c.1525-1569 Bruxelas),

Pieter Brueghel,O Velho, (c.1525-1569 Bruxelas), “A Parábola dos Cegos”,1568

[1] Refiro-me aqui ao conceito de paradigma, tal como André Barata o utiliza, aludindo à teoria das “revoluções científicas” de Thomas S. Kuhn.

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