Da penumbra tocada pelo canto

A autora Isabel Aguiar é natural na Madeira e vive actualmente em Lisboa, licenciada em Literatura e professora de Português no Ensino Secundário. Estreou-se na poesia com a obra Bichos Instantâneos (com o grande poeta António Ramos Rosa), em 2002, em 2003 publica Nunca se Regressa ao Mesmo Lugar, regressa à poesia em 2014, com a obra Requiem por Aushwitz e acaba de publicar A Língua de Esperanto dos Pássaros.

Imagino que se tivesse, algum dia, publicado um livro com António Ramos Rosa, jamais seria capaz de sair indemne do feitiço da sua poesia. Talvez (ou não) isso tenha acontecido com Isabel Aguiar, uma razão para o seu longo interregno, entre 2003 e 2014. O assombroso livro que ambos escreveram, Isabel Aguiar e António Ramos Rosa, deixou-me a sós com esse enigma que é o poema, simultaneamente evocação e deambulação, concentrando em si não só o poder da linguagem, como também o da imagem, que a ascensão poética liberta.

Gosto particularmente do título deste livro. A língua de esperanto reenvia-nos para a ideia de uma origem comum que seria entendida por todos os homens, exprimindo o desejo utópico de uma reunião, a felicidade encontra-se implícita nesta aspiração a uma linguagem unívoca. Por outro lado, a língua dos pássaros convoca o belíssimo poema do persa Farid ud-Din-Attar, escrito em 1177. A “língua dos pássaros” ou, como no título original, a “Conferência dos Pássaros”, uma alegoria que designa a procura de deus, aqui protagonizado pelo mítico pássaro Simorgh. Parábola que concentra em si a doutrina sufi, a “língua dos pássaros”, no poema de Farid, constitui-se como a via sagrada do conhecimento e do acesso a Deus, já que estes, partindo numa viagem iniciática em busca de Simorgh, atravessam sete vales que correspondem aos estágios que o sufi deve ultrapassar para chegar à perfeição divina. Na fábula, são inúmeras as aves que partem, mas apenas 30 chegam ao seu destino e, na chegada à moradia do rei, descobrem ser eles próprios o rei. O sentido da parábola aponta para uma auto-descoberta e auto-conhecimento do sufi, que tem como base fundamental o desapego para alcançar a iluminação.

O título de Isabel Aguiar deambula sobre estas ressonâncias e com ambas brinca, no jogo que se estabelece entre o esperanto, enquanto o universalmente comunicável e o próprio enigma da linguagem, que se deseja universal. Por outro lado, a tradição judaica (e refiro-me especificamente a um texto de Walter Benjamin) fala de uma linguagem universal e liberta das cadeias da escrita, que seria falada pelos pássaros e compreendida pelas crianças abençoadas a um domingo. A máxima leveza, a da dança ou a da manhã intocada, é essa, o momento em que as palavras se soltam dos grilhões da escrita e ascendem ao canto dos pássaros, os seres de eleição presentes neste livro.

O poema é esse lugar, o da busca da justeza entre a palavra e a coisa, como se diz na página 10: “qualquer palavra assombra/o sítio onde estamos/aqui”. Toca-nos ao de leve, assim, como um gesto de espanto, daí a imagem de “colher o fruto/colher a árvore”, que nela, palavra assombrosa, se guarda. Porém, este espanto parece-se com o gesto de levantar o véu e descobrir o que sempre aí esteve, simples, original e, por isso mesmo, espanto que se renova a cada olhar. A imagem do pão, sobre a qual a poeta opera uma deslocação semântica: “o pão que escrevo e como”, designa o alimento primordial, o pão que “é da cidade inteira”, esse fundo universal que une os homens, tal como a língua. A língua que é de todos, falada e comida por todos. Porém, o último verso reclama o carácter enigmático dessa língua: “que língua falais?”

Se a poética de Isabel Aguiar se configura como um exercício de despojamento, ou melhor, de despossessão, como prefiro chamar-lhe, nada se faz pelo lado óbvio, mas através de uma recorrência aos jogos de linguagem, aos deslocamentos semânticos e tantos outros efeitos de prosódia que marcam o jogo poético, de forma discreta e nada ostensiva.

Este gesto de desapego flutua como uma imagem que perpassa vários poemas. Tome-se como exemplo, na página 18: “(…)a única luz é um fio/e não há nada a perder”. Só através do vazio e do improvável “estado de ser”, duas modalidades a que o sujeito lírico recorre frequentemente, pode aceder-se à inocência do “esperanto” dos pássaros – e aqui há também uma outra palavra que ressoa, o espanto enquanto condição originária de abertura para o conhecimento. Ou seja, neste sermos tocados pelas coisas, sermos chamados e olhados por elas, pois elas querem ser reconhecidas na linguagem.

Porém, não só do espanto nasce este desejo de dar nome, como modo de conhecimento, mas existe também uma tensão, uma espera, e aqui o tom pode ser o da revelação mística, como pode ver-se no mesmo poema: “o vosso rosto levanta-se com o sol/ o entorno é este pranto/ dos pássaros/ esperanto esperando-vos”. Além da aliteração que dobra a extensão do verso, existe um subtil jogo que entretece esta ideia da linguagem como língua universal e como espera, insinuando algo que subjaz no próprio título, com a sua dualidade semântica. A vibração secreta da linguagem como uma utopia humana, a linguagem messiânica ou língua pura, como realidade una e cristalina vislumbrada por detrás da separação das línguas, ressoa nestes versos. E continua assim: “pão e côdea reunidos/a caminho da mesma boca”. Se a imagem alude aqui ao alimento “físico”, alimento primordial dos homens e sacralizado pela partilha comunitária, ela não é senão uma metáfora sobre o prodígio que é a linguagem originária, que nos alimenta e reclama a sua unidade, na enunciação “pão e côdea reunidos”. A subtil imagem, cuja simplicidade a torna ainda mais poderosa na sua energia irradiante, diz respeito a essa ideia de um alimento comum, uma pré-condição de toda a experiência humana e de toda a sua história.

O poema convida ao salto semântico, fazendo-nos aderir a uma outra vertente do poético, a metafísica. Lembra-nos assim as linhas fluídas da escrita de Llansol, quando, em O Livro das Comunidades, nos apela à dimensão “sonhante” da linguagem, procurando a implosão da discursividade e o desejo da língua do advir, que se desenha nos interstícios e nas ruínas de uma certa ditadura da lógica. Também María Zambrano via na poesia a condição de possibilidade da unidade entre a totalidade da experiência humana e a linguagem. É disso que fala no seu ensaio Clareiras do Bosque, quando escreve a expressão “habitar a linguagem”, para designar a vocação poética. “A Língua de Esperanto dos Pássaros” traz consigo esse incêndio que se acolhe na dobra do poema, à espera de “colher o fruto” e de “colher a árvore”, assinalando o assombro e a distensão do silêncio das coisas, na espera da nomeação.

Os poemas de Isabel Aguiar fintam o óbvio, suspendem clichés, falam de coisas que não se mostram senão num delicado desvelamento, o que por vezes pode levar-nos à ideia de um certo fechamento do poema. Não é leitura que se dê à facilidade, mas jamais se furta ao encontro, pois é ele que torna a palavra e o seu sentido irradiantes. A via, diz-se aqui, a única via, é a do olhar, o daqueles que se olham uns aos outros (p. 20): “olham-se os que olham para nunca dentro/olham-se aos outros”. O encontro e o reconhecimento do outro, dimensão nunca esquecida da poética de Isabel Aguiar, irremediavelmente marcada pela poética celaniana, em que “o poema vai a caminho do outro”, como o poeta nos diz no seu magnífico texto “O Meridiano e outros textos”, traduzido por João Barrento. A única via é aquela que se estende no caminhar para o outro, condição de despojamento, sim, mas também gesto esplêndido e ético de nos vermos no outro como um espelho de nós próprios, como diz a autora no mesmo poema: “porque o reflexo é uma/refracção da água/as linhas encontram/o ponto divergente/a dois metros das janelas/e depois que quereis/encontrar?/encontrai-vos nos passos dos pássaros”. O deslocamento que é aqui operado, jogando com a ideia da fluidez (da água) e do olhar, da sua transparência (do reflexo) culmina com o último verso em que o sujeito lírico fala do encontro “nos passos dos pássaros” (p. 20). Descortinamos na enigmática imagem uma alusão ao silêncio da linguagem, metaforizada pelos “passos dos pássaros”, os portadores ou anunciadores da língua universal.

A recusa das grandes certezas, “as lâmpadas/com fusíveis queimados”, a impossibilidade de “olhar o mármore”, pois aquele que “o olha cega por infinidades/fracções de tempo em que exististes/outrora”. É como se a luz, pelo seu excesso, tornasse os seres incapazes de ver o obscuro, uma dimensão das coisas que lhe preexiste e, ao mesmo tempo, lhe sobrevive, como uma espécie de “dom”, como se refere neste longo poema, na página 23. Não existe mundo, mas mundos, coexistindo, interseccionando-se, falemos antes de limiares que abrem passagens para outros lugares. Dizer luz ou sombra, só por si, na sua polaridade, parece rasgar o real, desfigurá-lo, porque todos os seres vivem “sempre de vigia/não vá qualquer coisa cair/sem nos darmos conta.” (p. 23). Existe, assim, um “tempo intermédio” que enforma verdadeiramente toda a estrutura desta poética, atenta aos sinais, às chegadas e às partidas, que “nunca são anunciadas”. Condição iniciática, certamente, do neófito que acede aos mistérios, mas também e paradoxalmente, condição nossa de pobreza existencial, claramente enunciada no poema: “sombrios dias vos acolhem/ hoje em qualquer lugar/ perdestes o pio/com os olhos inscritos/no meu tempo.”

“Perder o pio” sinaliza a queda da linguagem, uma mudez incapaz de colher o fruto ou a árvore, sedenta de luz, mas condenada aos dias sombrios, desesperando pelo fio de clara música que a salve, essa língua de esperanto. Depois, fala o sujeito lírico dos “bicos sôfregos” que “comem o pão todo/que há sobre a terra. Bicos calados/são perigosos.”

A história humana tem aqui o seu lugar. O rosto da catástrofe assoma aqui, mais uma vez, o sofrimento dos que “cavam covas/já em fuga da linguagem/o que dizem os mendigos/os esmolados/os todos?”. Fala, também aqui, na p. 25, daqueles que nunca sairão desse “lugar entalado”. E assalta-nos o arrepio, ao compreendermos que esses são os despojados ou os vencidos da história: “os que vestem trajes/não vão a festas de gala/mas entreolham-se/nus/da memória de outrora”. O poema lembra, convoca: “vivificam-se rostos/de antecedentes/murmurantes/sempre os mesmos/os alheios”. Seguir este rastro do vazio da linguagem significa mergulhar a pique na “solidão da visão dos olhos”, o negro açoite da melancolia profunda. O reverso da vida passa por aqui, a espectral figura de um tempo não cumprido, como nos versos da página 26, dos “que ficam na/ fila de espera/ da viagem prometida./não viajar/é não cumprir uma promessa/ficar em terra/é sinal de viuvez/à espera do tempo que/não passa.”

Simbolizados aqui, não são só os pássaros, os que sibilinamente detêm o segredo da linguagem e da música libertadora, portadores desse sagrado, se estabelecermos uma relação com o sentido originário e implícito que dá o título ao livro, mas também existem outros animais, como os gatos e de um modo mais impressivo, os peixes. O combate da linguagem passa, neste poema, sobretudo nas páginas 26 e 27, pela relação entre os pássaros e os peixes (metáforas que operam de novo um deslocamento semântico e como é fértil esta poética, nos seus efeitos prosódicos), mas ele conhece uma figura de mediação que nos remete para a escrita: “não se sabe nada/é assim o que está/pousado numa prateleira/o papel passa a tinta permanente/o que sobra/e não é já testemunho”.

Algo de espesso se instala no poema, apelando à sua decifração, como nos diz a poeta: “os pássaros que não conhecem/a língua./derradeiramente falarão de si/os pássaros/que encontrei um dia.” Diz de si mesma Isabel Aguiar ao escrever: “as alegorias são mais espessas do que as metáforas/como a nata fora do leite.” Esta espessura, que é própria de um certo modo profético ou de uma poesia que já abandonou a esperança ou o falso optimismo, aparece-nos como um conviva estranho, de olhar ferino e língua áspera, contaminando todos os habitantes dessa casa de que nos fala na p. 30: “a casa é a estrutura do pensamento”. Mas é também a casa da linguagem ou a do ser, como nos dizia María Zambrano, evocando Heidegger, quando se referia ao Dasein e à presença do ser na poesia, referindo-se, em particular, à poesia de Hölderlin. Porém, a claridade não é aqui óbvia e esta casa do poema tem lugares escondidos, “escadas infindas” que levam aos fundos “onde habitam os pássaros” (p. 30). E a língua que aqui se fala é a “língua da incompreensibilidade”, numa alusão à violência do quotidiano e dos homens.

Do modo como impetuosamente somos levados a pensar o enovelar da razão com a linguagem, ressalte-se como se adensa a epiderme do poema, ao convocar-se aqui a imagem do “acendedor dos relâmpagos” que “está num armário no vão de escada”. A espantosa metáfora, de irradiante poder e a dar conta da desmesura e do sublime. A este propósito, evoco aqui um belíssimo texto do poeta brasileiro Carlos Nejar, Os Viventes, em que este define o poeta como aquele que persegue o impossível, uma espécie de acendedor de relâmpagos, embriagado de uma luz que, depois de passar, deixa o escuro ainda mais escuro, pelo contraste com o brilho extinto e os vestígios dessa luz queimam as mãos do poeta, a braços com essa devastação do excesso, com a ferida do real e da própria linguagem. Mas é ainda ao poeta que cabe a função de trazer o ar e a penumbra à condição humana, como uma espécie de salvação, enunciada no último verso do poema: “e quando chegará a hora do salvamento?”.

É deste frémito, o do relâmpago, a luz do excesso que há-de “orquestrar os sons mais cantáveis”, que a poesia nos fala, implodindo o cerco da melancolia, não sem que o poeta nela mergulhe, na sua obscuridade e na opacidade do real, para que da noite ele renasça, nesse fulgor cantante da linguagem. Nada menos que salvífico este canto. O dos pássaros, em certas manhãs de esplendor marítimo.

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