É com alegria que o júri do Prémio de Poesia do Pen Clube Português, constituído por Teresa Martins Marques, Manuel Gusmão e Maria João Cantinho, decidiu atribuir o Prémio de Poesia, em ex aequo e por unanimidade, a duas obras: a Hélia Correia, pela sua obra A Terceira Miséria, editada pela Relógio d’água e ao poeta Manuel de Freitas, pela obra Cólofon, publicada pela editora Fahrenheit 451. O júri decidiu que estas obras reuniam as condições essenciais para a atribuição do prémio, pela sua excelência, no que diz respeito, tanto ao trabalho de reinvenção da linguagem e originalidade, como à sua pertinência, do ponto de vista da actual situação. No caso da obra de Hélia Correia, essa pertinência esboça-se desde logo no seu primeiro poema, em que a autora retoma a pergunta do poeta Hölderlin: “Para quê, perguntou ele, para que servem/os poetas em tempo de indigência?” (p.7). Mais do que um lamento, esta formulação converte-se numa convocação para uma tarefa, porventura metafísica, mas essencialmente ética. Se, por um lado, se faz o questionamento de uma origem (a da Grécia como nascimento da civilização ocidental), por outro, reclama-se um regresso a uma dignidade perdida, para a qual é preciso resgatar as ágoras. Se a primeira miséria diz respeito à deserção dos deuses, a segunda alude à “miséria da interpretação/que tudo trai” (p.26). O tema da ruína e da alegoria é um fio de água que percorre todo o livro, com essa beleza avassaladora que só aqueles que se destinam à morte e ao sacrifício possuem, mas a metáfora atinge o seu clímax no poema 23 (p. 29): “A terceira miséria é esta, a de hoje./A de quem já não ouve nem pergunta.”. A ágora, o nobre espaço da pólis, perdeu todo o seu sentido, deixou de ser um referencial da ética democrática, mas essa perda assenta em algo mais grave, ainda, e que é a miséria “de quem não recorda”, reflectindo metaforicamente a situação política actual. Aqui, não é somente a perda da identidade e da soberania que nos aparecem destroçadas, mas é sobretudo a ideia de Europa, esse sonho de um humanismo arquetípico, matriz da sociedade ocidental, em que a Grécia aparece como a « mãe assassinada ». Perda de identidade, erosão da resistência a uma informidade que, cada vez mais, ameaça a singularidade de um povo, fazendo-o soçobrar num mundo espectral e assombrado pela catástrofe. A imagem não poderia ser mais adequada a esta “terceira miséria” em que vivemos hoje, não apenas a dos gregos, mas a da “gente do sul” (p. 38). A condição do despojado ou da vítima sacrificial, aquela que reencontramos também na condição de Homo Sacer, emerge no poema 32 (p. 38): “Oh, os amigos, os abandonados,/Esses, os destinados ao extermínio,/Esses os belos despojados, nus”. Se a escrita de Hélia Correia nos aparece nesta obra contaminada por uma melancolia intensa, há, porém, um apelo, uma ténue esperança que a anima como um sopro oculto, pois, se a “terceira miséria” é a do silêncio, “em que já ninguém ouve nem pergunta” ou a do esquecimento, a palavra, no entanto, reanima a ideia da polis, reivindicando um “início” ou uma nova era, nascente do « poder da palavra, a fervilhante»(p. 39), capaz de reacender ainda a chama antiga da Grécia, de resgatar a ideia de pólis e de inaugurar a hospitalidade da linguagem. Maria João Cantinho Texto lido na S.P.A., na Cerimónia de Entrega de Prémios
