Do conceito de Violência Divina em Benjamin ao Conceito de Violência em Zizek

Mais do que nunca precisamos de pensar no papel da violência e do seu poder e na função que ela tem, atualmente, nos nossos regimes supostamente democráticos. Quer na sua função de manter a ordem, a violência do direito, a jurídica, a que é exercida para manter a ordem e sancionar, seja na violência revolucionária, quiçá legítima, como ela é exercida hoje, por toda a Europa, Norte de África (nos países como Egipto, Tunísia) ou seja, ainda, como nos mostram os mais recentes acontecimentos, particularmente na Turquia, Ucrânia, etc..

Como pensar atualmente a violência como poder (Gewalt) –independentemente das conotações que possa ter o conceito – , nas nossas sociedades que estão cada vez mais ameaçadas pelo imperialismo económico, fazendo desintegrar a mais importante conquista da Europa, que era o “Estado Social”? Não se terão transformado as nossas democracias em algo em que vigora já a lei de exceção? É neste contexto que nos interessa considerar a pertinência do pensamento de Zizek e da sua interpretação ou releitura do conceito de violência divina de Walter Benjamin.

Já Alexis de Tocqueville, como cita Bensaïd no seu artigo, um aristocrata que foi pioneiro na análise do conceito de democracia e que refletiu muito sobre a Revolução americana e a revolução francesa, dizia, num artigo do New Yorker: “Tenho pelas instituições democráticas um gosto racional (…) mas eu sou aristocrata por instinto, ou seja, menosprezo e receio a multidão. Amo profundamente a liberdade, o respeito pelos direitos, mas não a democracia.” (Bensaïd, 2009, p. 27). Este medo das massas, da violência latente que constitui a força revolucionária por excelência, e a paixão da ordem constituem o fundo no qual assenta toda a ideologia liberal, daí que, de acordo com Bensaïd (e com o qual concordo plenamente), a democracia não é senão “o nariz falso do despotismo mercantil e da sua concorrência” (ibidem).

Exatamente por essa razão, e por reconhecer os efeitos perversos da democracia, apregoando o jargão da igualdade, da liberdade e da fraternidade – tão ironicamente revolucionário – é que o filósofo francês Jacques Rancière se refere ao “escândalo democrático”, na sua obra La Haine de la Démocratie e retomando o assunto em “Les démocraties contre la démocratie” (Rancière, Les Démocraties contre la Démocratie, 2009), querendo com isso dizer que o “escândalo” radica no facto de que a democracia, para sobreviver, tem de ir sempre mais longe, transgredir todas as formas institucionalizadas, de modo a que não se deixe petrificar. Ela desenvolve as suas formas, constantemente, num território onde se contrapõem forças que favorecem os interesses do estado e os interesses dos seus cidadãos, criando um paradoxo incontornável no próprio coração do seu conceito. Com tudo isto, pelas mais variadas razões e, sobretudo, pelo modo como os recentes factos, ocorrendo no coração da Europa, corroboram essa natureza escandalosa, o conceito de democracia tem vindo a esvaziar-se do seu sentido. O que reflecte um paradoxo, do ponto de vista de Zizek, que vê na democracia um “coadjuvante político «natural» do capitalismo” (Giorgio Agamben, 2009, p. 126). Ou seja, o mesmo capitalismo que criou as condições que permitiram o aparecimento da democracia é o que a faz implodir, agora, destruindo as suas premissas essenciais.

Como o diz J. Luc Nancy, na mesma obra, “«Democracia» tornou-se um caso exemplar de insignificância (…) «Democracia» quer dizer, em suma, tudo – política, ética, direito, civilização – e não quer dizer nada.” (Nancy, 2009, p. 77). Na sua maior parte, o que se verifica nas democracias dos países do sul da Europa é exatamente a destituição dessa substancialidade, ocultando regimes políticos que já não são autónomos e nem sequer são senhores da sua soberania, vivendo, ao invés, em estado de exceção.

Os factos recentes da Grécia, Espanha, Chipre e de Portugal confirmam essa perda de soberania, em nome de uma alienação da liberdade democrática em favor dos mais obscuros interesses económicos. É preciso dizê-lo, essas democracias reflectem perversamente os jogos de poder que têm o seu palco histórico numa pretensa União Europeia. Mais uma vez, e em nome de um suposto progresso político, social e económico, e da ideia de um progresso europeu, assistimos à derrocada da/s democracia/s e ao aparecimento de novas forças políticas (de extrema direita e fascistas) que se reativam perigosamente, ressurgindo dos escombros de uma Europa em convulsão e, por enquanto, a violência é, ainda, latente ou mais ou menos controlada.

O texto “O Carácter Destrutivo”, de Walter Benjamin pode constituir uma das chaves para a compreensão mais aproximada daquilo a que ele chama a “violência divina”, isto é, o gesto violento e revolucionário, simultaneamente destrutivo e de abertura, fundacional. Como ele o afirma nesse mesmo texto, o objetivo do “carácter destrutivo” é, não a aniquilação vazia e gratuita, mas sim a possibilidade de “criar espaço” [Platz schafen] (Benjamin W. , Der Destruktive Charakter, 1972, p. 396), de abrir novos caminhos, destruindo uma lógica continuista do poder. As características do “carácter destrutivo” são assim regeneradoras e, embora a destruição seja uma exigência, ela não é um fim em si, mas um meio para fundar a justiça. É isto que constitui a violência enquanto gesto revolucionário, à luz do pensamento. O que caracteriza, então, o gesto violento e revolucionário, fundador de uma nova ordem, da justiça, da violência da barbárie, a que tantas vezes assistimos no passado recente? Será legítimo, ainda, associar a violência divina, de que fala Benjamin, à ideia de justiça?

O conceito de violência, na obra de Walter Benjamin, aparece sempre como uma necessidade urgente de romper com a linearidade do tempo histórico, fissurando assim uma visão falseada. É por isso que ela – a violência – aparece, tanto no conceito de alegoria, como uma forma de despertar e de resgatar as coisas à sua catástrofe, salvando-as e resgatando-as, como na própria constituição da imagem dialéctica, ao longo de todo o capítulo/Letra N da sua obra O Livro das Passagens (Benjamin W. , Das Passagenwerk, 1972). O estilhaçamento da continuidade, a recusa da subserviência a uma história de vencedores, levada a cabo pelo gesto revolucionário, nas teses da história, o “despertar das fantasmagorias” na Letra K d’O Livro das Passagens (Ibidem), a dissipação da ordem profana e cronológica no Fragmento Teológico-Político (Benjamin W. , Theologisch-Politisches Fragment, 1972), representam bem uma linha condutora do seu pensamento e uma coerência notável.

Deste modo, a violência e, no caso particular, a violência divina enquanto tal, é um gesto profundamente revolucionário, no pleno sentido do termo. Slavov Zizek, no seu texto “De la démocratie à la violence divine” reinterpreta Walter Benjamin, referindo-se aos actos desesperados de auto-defesa popular:

Os actos desesperados de autodefesa popular violenta são os exemplos daquilo a que Walter Benjamin chamava «violência divina»: eles situam-se numa espécie de suspensão político-religiosa do ético. Mesmo se eles aparecem perante uma consciência moral ordinária como actos «imorais», os assassínios, não temos o direito de os condenar, uma vez que respondem a anos, ou seja, a séculos de violência e exploração estatal e económica sistemática.” (Zizek, 2009, pp. 141,142)

Posição polémica, sem dúvida, mas concretamente vemos essas explosões ocorrerem em locais onde a violência dos opressores escondia uma paz podre. Relembremos um caso recente, como o da Turquia. Ou os ocasionais distúrbios ocorrendo um pouco por toda a Europa, mostrando essa revolta, sobretudo da parte de minorias.

O texto de Benjamin Sobre a Crítica da Violência (Zur Kritik der Gewalt), reflecte lucidamente sobre essa questão – e sabemos como Benjamin conhecia os movimentos políticos que cresceram a partir de meados do século XIX e como partilhou os ideais que nortearam a revolução russa. Na verdade, este texto de 1921, não deixa claro se conhecia bem ou não o marxismo, contacto que será feito através de Asja Lascis (em Capri e em 1924), mas acompanhava os desenvolvimentos da história, após o final da Primeira Grande Guerra, tendo já conhecido o amargo sabor da catástrofe e tinha lido atentamente a obra de Sorel, Réfléxions sur la Violence. Benjamin parte, precisamente, das reflexões de Sorel sobre as greves para pensar a questão da violência associada ao movimento revolucionário e como poder do proletariado de pôr em causa as instâncias repressivas do estado.

A posição benjaminiana de defesa da violência, como muito bem compreendem – e cada um à sua maneira – Zizek e Agamben, refere-se especificamente à compreensão do poder deflagrador da mesma na continuidade histórica. Daí que Agamben dê, na sua obra Estado de Exceção, uma importância fundamental ao debate entre Carl Schmitt e Benjamin, no quadro dos conceitos políticos da sua época. Para Benjamin, como ele o compreendeu cedo, a exigência da legitimação da justiça passa, precisamente, pelo gesto da violência divina, gesto fundador e, neste sentido, absolutamente revolucionário, pois é ele que instaura a justiça e faz dissipar o direito humano, ou seja, o direito dos opressores. Por isso, a violência divina é o gesto que legitima a justiça, longe da mera força e da autoridade que apenas força a lei. A análise benjaminiana reflecte, assim, sobre a crise do modelo europeu da democracia burguesa da sua época, liberal e parlamentar, e o conceito de direito que lhe é intrínseco. É na aniquilação do poder conservador do estado, que a violência divina “lava a falta”, a culpa, mas, ao mesmo tempo coloca-se fora do campo da expiação, pertence a uma outra ordem que transcende a falta e a expiação, pois estas pertencem à esfera da violência mítica (Benjamin W. , Zur Kritik der Gewalt, 1972, p. 199). A violência divina é destrutiva e é, com efeito, pela aniquilação brutal e imprevisível que ela lava a falta, “liberta o culpado, não só da falta, mas também do direito” (Derrida, Force de Loi, 1994, p. 125). Em lugar de colocar os limites e as fronteiras do direito, ela aniquila-os. Em lugar de induzir, ao mesmo tempo, à falta e à sua expiação, ela faz expiar.

A radicalidade desta violência pressupõe a supressão do próprio direito, no momento em que “recai sobre o culpado”. Isso leva-nos ao ponto essencial da questão: a ordem do direito, da violência mítica, é erradicada e suprimida, pela destruição da violência divina, fazendo nascer uma outra ordem, sagrada: a da justiça divina e messiânica (Derrida, Force de Loi, 1994, p. 126). Neste sentido, a violência divina não é apenas pura, como também é revolucionária, originando uma nova ordem, em que a justiça é a palavra de ordem. A violência divina suprime a própria violência mítica, instaurando a justiça. Mas estará ela ao alcance dos homens?

Benjamin é claro, nesse aspecto. Tal violência pura e divina, como tal, é uma decisão inacessível ao homem: “Para os homens não é igualmente possível nem urgente, decidir quando uma violência pura devesse ser efetiva num determinado caso.” (Benjamin W. , Zur Kritik der Gewalt, 1972, pp. 202, 203). Significa tal dizer que é a justiça divina, entenda-se messiânica, a mais justa, a mais efetiva, a mais histórica, a mais revolucionária, aquela que conhece o maior poder de decisão. Porém, enquanto tal, ela não se presta a nenhuma determinação humana, a nenhum conhecimento ou «certeza» que possam ser decididos da nossa parte, pois, tal como Benjamin afirma, não se conhece essa violência nela própria, como tal, mas sempre nos seus “efeitos incomparáveis”, pois “a força da violência, a de lavar a falta, não salta aos olhos dos homens” (Benjamin W. , Zur Kritik der Gewalt, 1972, p. 203).

No último capítulo da sua obra Violência, intitulado “Violência Divina”, Zizek evoca o anjo da história das Teses sobre a História, de Walter Benjamin (Benjamin W. , Über den Begriff der Geschichte, 1977), nomeadamente a tese IX. E coloca-nos a seguinte questão:

E se a violência divina fosse a intervenção deste anjo? Ao ver o amontoado de escombros que cresce em direcção ao céu, estes destroços da injustiça, o anjo contra-ataca de vez em quando para restabelecer o equilíbrio, vingando-se do impacto devastador do «progresso». Não poderia toda a história da humanidade ser vista como uma normalização crescente da injustiça, trazendo consigo o sofrimento de milhões de seres humanos sem nome e sem rosto? Algures, na esfera do «divino», talvez estas injustiças não sejam esquecidas. Acumulam-se, os erros são registados, a tensão aumenta e torna-se cada vez mais insuportável, até ao momento que a violência divina explode numa cólera de retaliação devastadora. (Zizek S. , 2008, p. 156).

Esta concepção ou imagem utilizada por Zizek remete-nos imediatamente para a ideia da violência divina como uma restauração da justiça, num sentido que Benjamin perfilharia, o da violência revolucionária, sentido que é o fio que conduz a obra das teses benjaminianas sobre a história, num contexto materialista-dialéctico. E Zizek procura, a partir de exemplos como o terrorismo, mostrar o que não é a violência divina, tentando desfazer equívocos:

A nossa primeira conclusão deverá ser que a concepção da «violência divina» de Benjamin nada tinha a ver com a violência terrorista levada a cabo pelos fundamentalistas religiosos actuais que pretendem agir em nome de Deus e como instrumentos da Vontade Divina. (Zizek S. , 2008, p. 161)

Seguindo literalmente o texto de Benjamin, A Crítica da Violência, Zizek conclui que “a «violência divina» nada tem a ver com as explosões de «loucura sagrada»” e “não é uma intervenção directa de um Deus omnipotente vindo punir a humanidade pelos seus excessos” (Zizek S. , 2008, p. 174), mas “trata-se de uma decisão (matar, arriscar ou perder a própria vida) levada a cabo numa solidão absoluta, sem cobertura por parte do Grande Outro.” (Ibidem). Acrescenta: “Quando os que se encontram fora do campo social estrutural ferem «às cegas», reclamando e impondo justiça/vingança imediata, eis a violência divina”. (Zizek S. , 2008, p. 175). E cita como exemplo as massas das favelados descendo sobre a parte rica da cidade e pilhando tudo. Compara os assaltantes a “gafanhotos bíblicos”, exercendo um castigo divino pelas acções pecaminosas dos homens. E “esta violência divina ataca vinda do nada, é um meio sem fim” (ibidem). Assim, a violência divina pertence à ordem do Acontecimento, não havendo critérios que possam objectivamente identificar um acto de violência como divino. Aquilo que, para os outros, não passa de “uma explosão de violência, pode ser divino para os que nele participam – não há Grande Outro que garanta a sua natureza divina. O risco de a ler e assumir como divina cabe plenamente ao próprio sujeito: a violência divina é o trabalho do amor[1] do sujeito.” (Zizek S. , 2008, pp. 175, 176). Mas esse amor, como esclarece Zizek, é um acto de fidelidade à justiça e à ideia de Revolução, que integra o ódio, como o pólo – e mais uma vez Zizek recorre a Che Guevara. No sentido em que o amor se cumpre na salvação da aspiração legítima à justiça e não num sentimento subjectivo e sentimental. Zizek relembra ainda Kierkegaard e a “lógica da hainamoration, definida mais tarde por Lacan” (Zizek S. , 2008, p. 177), conceito no qual se condensam amor e ódio, designando assim aquilo que “releva da cisão no amante entre o ser amado e a verdadeira causa-objecto do meu amor por ela” (Ibidem). A ideia de que, por vezes, o ódio é a única prova do amor, confere, na óptica de Zizek, ao amor uma carga pauliniana, que é do domínio da “violência pura”, o “domínio fora da lei (do poder legal), o domínio da violência que não é fundação da lei nem suporte da lei, é o domínio do amor.”

É evidente que Zizek procura aqui o que vários comentadores e intérpretes de Walter Benjamin procuram também: compreender a que corresponde/equivale a “violência divina”, já que o próprio Benjamin reconhece a dificuldade em determinar os momentos da sua visibilidade (e esse é um dos tópicos essenciais nas últimas páginas do texto A Crítica da Violência). Se há um elemento que nos possa ajudar nessa compreensão (e perceber o quão pertinente é a releitura de Zizek) é a relação que Benjamin faz entre a violência divina e a revolução, insistindo num suposto que nunca se deve perder de vista: a violência divina é revolucionária, na sua natureza, porque é próprio dela a suspensão do direito humano e das leis humanas para restaurar a ordem da justiça e esta é sagrada, aos olhos de Benjamin, pois coloca-se acima do direito, não provém dele, mas é, antes, fonte ou a condição de possibilidade dessa justiça. E Zizek compreende bem um aspecto que quase sempre lança a maior das confusões sobre o pensamento de Walter Benjamin: a ideia de que a violência é divina nada tem que ver com uma concepção teológica da mesma e a uma secularização dessa categoria teológica, aplicada ao pensamento político. Agamben, em “Estado de Excepção” adverte-nos para essa secularização dos conceitos que se apresenta no pensamento de Benjamin e que o percorre, mesmo quando o autor alude a uma força messiânica que é libertadora e revolucionária, nas Teses sobre a História. É preciso desfazermo-nos da conotação teológica para entrarmos nos conceitos de que fala Benjamin, do mesmo modo que a leitura de Zizek o faz, ao dizer claramente:

A violência divina precisamente não é uma intervenção directa de um Deus omnipotente vindo punir a humanidade pelos seus excessos (…) longe de exprimir a omnipotência divina, a violência divina é um signo da própria impotência de Deus (do Grande Outro). (Zizek S. , 2008, p. 174).

Ela é, para todos os efeitos, ainda que “excessiva” e imprevisível, algo que pertence inequivocamente à ordem humana e diz respeito ao que de mais sagrado o homem reclama: a justiça. É neste sentido que ela é revolucionária, fazendo implodir o direito conservador e jurídico, esse que é imposto pela convenção, que assegura a ordem, mesmo que já nada tenha a ver com a justiça. Avassaladora, ela desintegra toda a estabilidade e a continuidade do poder, instaurando um período de suspensão, de epoché. Para que, nessa passagem do “anjo selvagem”, uma nova ordem política possa emergir.

[1] Refere-se, assim, a uma citação de Che Guevara.

Conferência proferida no Congresso “Viver Perigosamente”, Março de 2014.

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