A tartaruga de Bob Wilson

A tartaruga de Bob Wilson, de Pedro Teixeira Neves

Glaciar, Lisboa, 2018.

Maria João Cantinho

 […] e porém o problema não é enquanto pudermos dizer

senão quando já não soubermos falar […]

Pedro Teixeira Neves, «O Fósforo de Deus», p.24.

Pedro Teixeira Neves estreou-se na poesia com Chiasco (2006), nas edições Quasi. Tem dois romances publicados, um livro de contos e três livros de poesia (para além dos citados), além de vários livros no domínio do infanto-juvenil e um de fotografia. Participou ainda em várias colectâneas. Em 2018 publicou Uma Vírgula Depois (editora Glaciar), escrito a meias com Ivo Machado e, no mesmo ano, saiu A Tartaruga de Bob Wilson, igualmente pela mesma editora. É curioso notar que a sua obra poética nunca teve recepção crítica, não obstante a sua qualidade evidente e a singularidade da sua voz.

Podemos ver nesta obra como a presença da memória e da cultura literárias consolidam uma poética que estabelece permanentemente um diálogo com obras e autores da literatura universal, com o cinema, além de uma atenção constante à observação do quotidiano. A palavra aparece aqui como «um movimento do coração» (Neves, 2018, p. 9) que procura dar conta de uma fidelidade ao real, como diz o poeta: «acompanhar o ritmo ser-lhe pontual/ eis o mais próximo que podemos ambicionar/ de uma ideia de permanência» (Neves, 2018, p. 9). Não fosse a transitoriedade das coisas e do seu movimento ser intrínseco ao pulmão da palavra, então poderíamos falar de eternidade, o que o poeta sabe não passar de uma ilusão. É justamente no primeiro poema, «Bovary», que adivinhamos o gesto programático: «ensaiar o verso perfeito/ o poema translúcido fruto ou cristal/ como prova da sua impossibilidade (…)» (Neves, 2018, p. 9). O ensaio é menos para alcançar a translucidez do poema, que se sabe impossível, mas essencialmente para «ambicionar/ construir um sentido para a melancolia(…)». Aliás essa construção já se encontra implícita no uso da paráfrase de Raul Brandão, com que o poeta abre o livro: «E ainda o que nos vale são as palavras,/ para termos a que nos agarrar.» (Neves, 2018, p. 7). Ideia que o autor retoma no poema «Sandokan», quando diz: «a realidade não é poética/ por isso o poeta é um excluído/ sombra adejante no espelho da vida» (Neves, 2018, p. 42). O traço da melancolia perpassa todo o livro, onde a poesia se alimenta de uma pretensão ao «traço perfeito do tempo» (Neves, 2018, p. 42). Mesmo se os poemas são, neste livro, escritos na primeira pessoa, Pedro Teixeira Neves acentua uma constante reflexão sobre o fenómeno poético (e sobre a acedia), nesse movimento de desaceleração, que dá o mote ao próprio livro, no poema «A Tartaruga de Bob Wilson»:

Escrever  escrever    pois sim

mas saber realmente o que dizer não interessa

interessa ser a tartaruga sem o saber

interessa o poema enquanto acontecer

ao poema não interessa o tempo

nem para onde o tempo vai

ou mesmo se vai a tempo de o ser

interessa ser a tartaruga

e reservar quando muito alguns instantes

para a meio da cena parar e apenas

perguntar   perguntar   perguntar (Neves, 2018, p. 14)

Sabendo-se que um dos gestos mais exuberantes do dandy do século XIX – essa figura do melancólico por excelência – era passear uma tartaruga, compreendemos a escolha do animal, não apenas para a encenação de Robert Wilson, como também para o poeta, que se apropria da metáfora da tartaruga para falar do poema, inspirado na cenografia de Wilson. A lentidão do pensamento (e do poema), tal como a da tartaruga, é uma das características fundamentais do melancólico que, ensimesmado, se demora na contemplação e do questionamento do sentido da vida. Como se nessa suspensão do tempo, ou na sua desaceleração, houvesse um outro modo de temporalidade, poderíamos dizer uma dobra que permite o acesso à compreensão do fenómeno da vida, essencialmente a partir da ruína, e é aqui que se ancora também o gesto do melancólico.

Victor Hugo, na sua obra Les Travailleurs de la Mer, pronunciava assim o seu paradoxo: «A melancolia é a felicidade de estar triste» (Hugo, 2002, p. 253). A exaltação de um mundo onírico, assombrado, veja-se o belíssimo poema «O Corvo» (p. 31), corresponde a essa felicidade paradoxal, pela convocação da figura alegórica do corvo: «sim a solidão veste poesia/ e eu sou tão distante em mim/ vem noite vem vestir-te com o meu corpo/ vem perder-te no teu próprio fim.» (Neves, 2018, p. 31). Há uma luz saturnina neste poema, que é a sua força motriz e atravessa todo o livro, marcado por topoi que constroem entre si linhas rizomáticas, a partir das quais esta obra pode ser lida: a noite, a solidão, a morte, a decadência, a distância que se interpõe entre o sujeito e o mundo. Assinale-se aqui a construção de um universo alegórico, o qual reflecte o espírito melancólico e a sua tentativa de dar sentido à melancolia. Porém, paradoxalmente, vislumbra-se também um secreto comprazimento, uma embriaguez que a poesia transporta consigo e que conduz a uma libertação, num movimento de ascensão, de que nos fala Nancy, na sua obra Ivresse (Nancy, 2013, p. 37) . Esta condição, que constitui o próprio cerne de uma «poética alegórica», aparece em poemas como «Fracassar» ou «Ismael» de uma forma explícita, quando o poeta fala do «poema como negro cão ladrando ao invisível» (Neves, 2018, p. 62) ou da «manhã acordando para o obscuro/ nas páginas mais íntimas da noite» (Neves, 2018, p. 62). E o secreto desejo do melancólico, o de exaltar a vida naquilo que ela foi, na sua paixão convulsa, exprime-se claramente no «Terceiro Sonho de Descartes»: «por isso uma linha me basta/ um só verso seja magma ou equívoco/ mas nisso faço ponto de honra/ procurar uma linha de luz/ por entre os escombros da vida.» (Neves, 2018, p. 82).

Tal como o poeta diz no poema da tartaruga, que atravessa lentamente o palco, também aqui metáfora da vida e da sua espectralidade, ela é «alheia ao teu próprio atravessar de cena/ como quem se retira para um não lugar» (Neves, 2018, p. 15). De que «não lugar» falam estes poemas, já que a transcendência não assiste a esta poética? Eu arriscaria falar de limiar ou de lugares de passagem, mais uma vez desenhando-se aqui um dos núcleos temáticos desta obra, conferindo-lhe uma dimensão onírica.

Como já o escrevi, a propósito de Uma Vírgula Depois (Cantinho, 2019)[1], um livro escrito a quatro mãos com o poeta Ivo Machado, o universo poético de Pedro Teixeira Neves é denso e marcado pela ausência de Deus, uma luta permanente entre a luz e a noite, como se revela no poema «Terra Infértil» (p. 57):

luto

e caminho sobre o verso periclitante

entre a luz antiga e a sombra que há-de cair

como uma cegueira infinita

filho que se entrega ao destino

escrevo o que resta da minha transcendência

de homem filho de homens e do além […] (Neves, 2018, p. 57)

A condição do fracasso ou a do homem abandonado por Deus espelha-se ainda no modo como evoca o velho Ohlsdorfer, do filme O Cavalo de Turim, de Béla Tarr, ou de Joseph, personagem de Kafka:

luto e olho a janela obscura do dia

como ohlsdorfer sonhando a realidade por entre a tempestade

sou joseph e como e bebo e rego a terra e amo a árvore

acreditando ainda num deus desconhecido […] (Neves, 2018, p. 57)

Se há um traço comum entre as personagens que povoam A Tartaruga de Bob Wilson, nesse complexo jogo de vozes a que se entrega o poeta, é a sua busca de redenção ou de libertação da sua condição de seres melancólicos e prisioneiros do destino. Num mundo assombrado, nem que seja pela violência irredutível do quotidiano, tão banalizada que nos transforma em seres apáticos face às imagens de horror assolando-nos diariamente, resta ao poeta o dizer, quando ainda é possível falar. No poema «O fósforo de Deus», Pedro Teixeira Neves refere-se à fragilidade das palavras, «débeis testemunhas destes tempos/ em que a morte se passeia/ furtiva pela noite das televisões» (Neves, 2018, p. 24), diagnosticando que «o problema não é enquanto pudermos dizer/ senão quando já não soubermos falar.» (Neves, 2018, p. 24). Por isso, a tragédia é a da impossibilidade da fala e do poema, a do silêncio calando o horror, como se fosse dele cúmplice. O poema, ou a tartaruga, caminha em modo lentíssimo, na saída de si e em direcção ao outro, para parafrasear a expressão de Celan (Celan, 2002, p. 57), mas esse é ainda o traço possível do mundo, pois «quem escreve não precisa de um rosto/ são os poemas que deixam rasto» (Neves, 2018, p. 48) e «o ar como escreveu steiner/ está carregado de ecos» (Neves, 2018, p. 48). São pois esses «ecos», murmúrios ou imagens que nos assaltam e nos pedem que lhes emprestemos a voz, dando corpo ao que já não tem rosto, mas foi outrora vida, aquela que o melancólico anseia resgatar.

Bibliografia

Cantinho, M. J. (Fevereiro de 2019). «Como o suco dos frutos caídos nesse tempo». Obtido em 2019, de Revista Caliban: https://revistacaliban.net/como-o-suco-dos-frutos-ca%C3%ADdos-nesse-tempo-19dc491b8ae3 (consultado a 28/07/2019).

Celan, P. (2002). Le Méridien et Autres Proses. Paris: Éditions du Seuil.

Hugo, V. (2002). Les Travailleurs de la Mer (Vol. Tome II). Paris: Les Classiques de Poche.

Nancy, J.-L. (2013). Ivresse. Paris: Rivages.

Neves, P. T. (2018). A Tartaruga de Bob Wilson. Lisboa: Glaciar.


[1] “Como o suco dos frutos caídos nesse tempo” in  https://revistacaliban.net/como-o-suco-dos-frutos-ca%C3%ADdos-nesse-tempo-19dc491b8ae3 (consultado a 28/07/2019)

Publicado na Revista PensarDiverso, nº 8, Novembro de 2021.

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