O erro repetido: o que falta perceber?

A imagem é eloquente. O plano já estava traçado em 2014. A evidência é gritante e não a ver é, no mínimo, cego da nossa parte. O caso da ascensão de Matteo Salvini é verdadeiramente sinistro e inquietante. O seu desempenho como ministro do Interior, prometendo fechar os portos italianos aos imigrantes, tem o acordo de 64% dos italianos, que estão “muito ou bastante de acordo”, de acordo com uma sondagem SWG, com a criação de um bloqueio naval para impedir que as embarcações com imigrantes cheguem às costas italianas. E, de acordo com a mesma sondagem, dois em cada três italianos estão de acordo com a forma como foi gerida a crise do navio Aquarius. Ainda hoje, o mesmo ordenou o boicote de mais um barco de migrantes, designando-os como «carne humana» e enviando-os para outros países, como já fez com o Aquarius, que foi recebido por Valência.

Ao longo das duas últimas semanas temos sido «massacrados» (é o termo exacto) com sucessivas imagens e notícias de horror, fazendo reavivar imagens de outras épocas em que o fascismo era a palavra de ordem na Europa Central.

As fotografias da chegada de refugiados às fronteiras europeias, com hordas de fugitivos da guerra, assim como os resgates de migrantes no Mediterrâneo, faziam adivinhar a rejeição dos cidadãos europeus. No entanto, há um silêncio conveniente sobre os campos de refugiados, que se mantêm fora do nosso alcance. Também desconhecemos como são tratados os migrantes que vivem agora espalhados pela Europa e menos ainda sabemos das milícias de extrema-direita que se organizam para os travar na passagem de Itália para França, como foi o caso da Géneration Identitaire.

Viktor Órban foi subindo de tom, numa Europa que viu com incredulidade o Brexit acontecer — também pela mesma razão: o fecho das fronteiras — , e agora encontrou em Matteo Salvini o parceiro forte na sua política. Na última semana assistimos à expulsão implacável dos migrantes nos EUA e aos efeitos da ‘tolerância zero’ da administração de Trump, vendo soçobrar os jornalistas em lágrimas (como Rachel Maddow, num directo) diante do encerramento de crianças em jaulas, afastadas dos seus pais, no exercício do que é a mais desumana aplicação de leis. Enquanto isso Salvini, o Ministro do Interior em Itália e líder daquele que é já o partido mais forte em Itália (a Liga) graças à sua aplicação «eficaz» das políticas de exclusão de migrantes e, agora, também de ciganos, tendo proposto o seu recenseamento com a finalidade de expulsar os não-italianos, pois, como ele o disse: «Infelizmente, dos italianos não nos podemos livrar».

Não bastando isto, Viktor Órban lançou ontem, no Dia do Refugiado, uma lei que criminaliza quem ajudar os refugiados (seja com comida, roupas ou qualquer acto de solidariedade). Neste momento, as ONG que estão no terreno a trabalhar com a precariedade extrema destes casos vêm-se a braços com novos e sérios problemas, pois a tendência será a criminalização do seu trabalho, além da falta de apoio dos países que estão directamente afectados por estas questões. Pouco faltará a Salvini para tomar as mesmas medidas de Órban e tem sido bastante elogiado por este.

Não havendo uma solução à vista para a chegada de migrantes e refugiados, pode-se prever um agravamento célere da situação, perante a ineficácia da UE e dos países europeus em resolver a questão, o que levará a um crescimento descontrolado de movimentos (partidos e milícias) de extrema-direita que não recuam diante de nada. A braços com com uma crise económica que não dá sinais de abrandar e com o aumento de desemprego, torna-se dramático pensar no destino, não apenas dos europeus, como das populações que chegam, completamente desprovidas de meios para fazer face à sua subsistência diária.

Não é de hoje que o capitalismo exibe despudoradamente o seu rosto desumano. Basta-nos lembrar as crianças de Dickens na Inglaterra industrial e das hordas de populações miseráveis nas grandes metrópoles. Mas este capitalismo é também incompatível com o exercício da solidariedade, como o disse recentemente o filósofo italiano Franco Berardi, numa entrevista ao Jornal de Negócios, em que a solidariedade representa, para o capitalismo, uma ameaça aos seus interesses. Porque a solidariedade representa a resistência à uniformização dos interesses capitalistas, que pretendem a imposição de um não-pensamento ou de um não-questionamento, resultando em indiferença perante o outro.

É neste ponto que o capitalismo tangencia já o fascismo, deixando evidente o modo como ignoramos o outro e lhe somos indiferentes. O fascismo corresponde à forma como se impõe a lógica fria e racional da lei do mais forte ao mais fraco. Foi assim nas décadas de 30 e 40, em nome de um suposto progresso económico do povo (no caso o alemão), que exigia a limpeza étnica, manipulando as populações. Se a xenofobia e o racismo existem, então o fascista é aquele que domina a arte da manipulação, tornando cegas as suas populações. E já temos candidatos para esse exercício, como Salvini, Órban, Marine le Pen e outros que hão-de surgir, no rasto dos que hoje conhecem o sucesso nessa arte. E já não podemos explicar esta susceptibilidade das populações apenas pela ignorância (sempre o fermento da xenofobia e do racismo), mas temos outros factores que podem catalisá-lo fortemente e com eficácia: o medo e o desespero.

Até onde vamos permitir que esta evidência se instale? Esperamos pelo ponto de não-retorno ou interrompemos a sequência inevitável?

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