A editora Senso Incomum acaba de nascer, das mãos de Alexandre Moreira. Com uma excelente edição intitulada Não te Esqueças do Guarda-Chuva, ilustrada por Diana Batalha e prefaciada por João Oliveira Duarte. Nos dias que correm, novas e pequenas editoras são preciosas, para não deixarem morrer o que é, em muitos casos, de grande qualidade, abrindo caminho a novos autores. Não faltam os casos de pequenas e excelentes editoras em Portugal, para provar o que aqui digo.

Chega-se a este texto de forma desamparada. Onde gostaríamos de penetrar e essa entrada não nos é garantida, mas vislumbrada. Não se trata de ficção no sentido tradicional do termo, mas não deixa de o ser, nesse género difícil que é o microconto, praticado de forma escorreita e sem concessões ao leitor. Cada conto é tão curto que funciona como uma «chicotada irónica» que nos faz respirar fundo, antes de continuarmos, no sentido de suspensão das convicções, pois o narrador constitui-se como uma voz que nunca cede à tentação do juízo moral nem tão pouco identificamos nas personagens destes contos os grilhões da culpa. A ironia de que aqui se fala crava-se na própria linguagem, que é aqui usada para nos dar a medida de um desajustamento essencial que constitui as personagens, fazendo ressaltar o absurdo dos seus actos incompreensíveis. Ela revela-se na estocada com que o leitor é atingido em cada conto. É bom, então, que leitor que esteja atento aos indícios mínimos, aos pequenos sinais, sem esperar nenhuma explicação. Alguns dos contos são histórias de crimes, uns maiores, outros menores, outros são histórias de abandonos e de desencontros, protagonizadas por gentes embrutecidas e que perderam o conhecimento, em alguns casos, e cuja razão cede à pulsão instintiva, como veremos. Nem sequer estas histórias são trágicas, não há deuses nem destino convocados, mas um pano de fundo melancólico, de onde emerge o acontecimento que, aparentemente trivial, se revela absurdo, num determinado e inexplicável momento.
Logo desde o primeiro conto, “Dos males de andar a pé”, confrontamo-nos com personagens que são absolutamente normais, nesse sentido mecânico, como um homem metódico e aprumado, cujo dia é atravessado por um acontecimento anómalo, que faz deflagrar uma situação de absurdo: «Hoje de manhã dirigia-me à sede da companhia — contando com as sucursais, dou emprego a mais de dez mil almas — quando a parte da frente do automóvel foi engolida, literalmente engolida, pela estrada.» A introdução do acontecimento, aqui, é o que abre o campo de estranheza, que levará ao desfecho.
Esta é uma «época de inferno» (como o terá notado Pascal no século XVII, ao identificar a repetição e o riso como sinais infernais) em que a repetição mecânica e vazia atingiu o seu auge (e ainda não conhecemos as que hão-de vir). Um mundo, também, em que a lógica do neo-liberalismo se assenhoreia de tudo e que tudo logiciza sem contemplações. A ideia de que o sentido tem que ter um sentido ou a de que o texto ou a obra de arte têm que ser inteligíveis e comunicáveis parece ter-se imposto na literatura e nas artes. Nada mais falacioso e, ainda que suspeitássemos disso, há sempre uma boa «alma literária» (digo-o sem ironia e no melhor dos sentidos) que nos vem lembrar que o determinismo só se aplica à natureza.
Como acontece em muitos destes contos, eles começam com uma justificação ao comissário da polícia: “Atentaram contra a minha integridade física, senhor comissário.” Desta forma se abre um dos temas mais férteis do livro, precisamente por nos obrigar a pensar: a questão do modo como a criatura, o animal, emerge em nós em situação de ameaça física, do ponto de vista das personagens. Não é tanto a questão do mal e da bestialidade, mas sobretudo a da sobrevivência, no universo urbano e no espaço físico em que cada um de nós vive. Na obra de Edward T. Hall, A Dimensão Oculta, o autor fala da loucura provocada pelo excesso populacional entre animais, servindo-se de exemplos da biologia e referindo a importância da análise do comportamento animal para inferir tal conclusão. Uma das características que leva à agressividade descontrolada dos animais é precisamente a excessiva proximidade, a falta de espaço, tema que é aqui recorrente, obsessivo. Logo desde o primeiro conto, diga-se, em que a personagem, no final do conto, se vê ameaçada no seu espaço físico pela excessiva proximidade do simpático homem que não pára de falar e se vai aproximando cada vez mais: «Enquanto assim palrava, aproximava-se cada vez mais de mim, aproximava-se cada vez mais de mim e eu, homem decente e educado, ia recuando e sorrindo com delicadeza (…) Até que me vi encostado a um muro. Já não podia andar mais para trás (…)».
Mais do que sintoma do mal-estar nas grandes cidades, a obsessão pelo espaço e também pelo silêncio, como no conto “Uma mulher de hábitos” é metáfora da condição do homem actual, confinado ao seu espaço vital, que conserva ferozmente, como forma de sobrevivência. Essa obsessão atravessa todo o livro, assim como os gestos ritualizados (expressão, muitas vezes, de loucura ou de estado-limite), que conservam uma memória, como é o caso da personagem adulta que joga a jogos infantis, como um modo de preservar a infância ou para escapar a um excesso de realidade que enlouquece.
Quando me confrontei com estes contos, fui levada imediatamente ao universo de Kafka, o dos gestos mecânicos e incompreensíveis, ao universo do interdito da lei, em que um Josef K procura desesperadamente a resposta ou a chave que lhe permita aceder ao sentido. Porque é diante dessa ausência de sentido, do acontecimento de algo que faz disparar a reacção incompreensível, diríamos mesmo absurda, das personagens. O conto “Uma Mulher de Hábitos”, que foi dos que mais me impressionou, mostra como a absoluta regularidade do hábito pode transformar aquele ou aquela que o sofre num ser escravizado. Neste caso, é o silêncio que, à força de imposto, se transforma de tal modo ínsito ao sujeito que sair do hábito pode enlouquecê-lo. Ao ponto de matar. Ou o conto das bonecas, em que a mulher vive aprisionada na sua memória da infância. Também à força do hábito e da interiorização de uma lei que se transforma numa condição absoluta de existência. Por isso, as personagens nos surgem como que alienadas e regidas por regras que nos escapam, incompreensíveis, à luz do comportamento normativo. Alienadas pela regularidade absoluta dos seus gestos, como no conto “O sentido da ordem”, em que a faca com que corta regularmente a couve é a mesma que corta regularmente o corpo do homem, em resposta à discussão sobre a disposição da ordem dos objectos em casa.
Não chegam a ser personagens, ainda que o sejam, mas que, precisamente, se constroem na antítese do humano. Algumas nem são reconhecíveis materialmente, como no caso do extraordinário conto “A Mulher descosida”, num flirt assumido com o surrealismo. Assemelham-se mais a máquinas que avariam, quando o sistema lhes falha, como se sofressem uma espécie de curto-circuito que os transforma em seres perigosos. Imprevisíveis, situando-se algures entre a regularidade do gesto mecânico, do qual se tornaram reféns, e uma animalidade que emerge como pulsão e lhes desfigura a humanidade. Em suma, irreconhecíveis, mas apenas no gesto que revela a sua incapacidade de agirem como humanos.
João Oliveira Duarte citou, no prefácio que antecede a obra, uma carta de Benjamin a Scholem, com data de 12 de Junho de 1938, a propósito da questão da perda da tradição, isto é, da perda da capacidade de leitura, com a qual se confrontavam os jovens judeus da sua época e a propósito de Kafka. Ainda numa linha de continuidade, eu citaria uma outra passagem dessa carta, sobre a questão da perda da linguagem, que traduz uma perda de experiência humana. As personagens de Kafka, como muitas daquelas que aqui se apresentam, perderam a capacidade de falar, estão prisioneiras de um ensimesmamento que lhes destruiu essa capacidade de se exprimirem pela palavra. Daí a importância do gesto, que podemos identificar como sendo o de uma recusa, mas também o de uma “queda” do humano no animal, renunciando, por assim dizer, à condição da sabedoria humana. Não passa aqui tanto pela transformação em animal, como no caso de Gregor Samsa, por exemplo, no conto “A Metamorfose”, mas pela incapacidade de falar e de pensar, agindo como um animal acossado, quando se vê ameaçado. O carácter absurdo do gesto nasce, então, dessa imprevisibilidade que lhe dá origem.
Uma análise mais simplista reconheceria o gesto do psicopata ou do sociopata, pela ausência de empatia com o outro ou pela frieza do gesto. Mas não é o mal que se reconhece aqui, neste gesto. Nem sequer o prazer justifica a passagem ao acto. É sobretudo esse absurdo que emerge no instante e que revela a «avaria», a falha. Curiosamente, as personagens, nos seus gestos absurdos, não revelam culpa e são de uma inocência quase pueril, o que mostra como o próprio acontecimento que as levou ao seu limite lhes é estranho, como se não fossem elas próprias as suas autoras.
Um universo inquietante, perturbador e isso seria ainda dizer pouco, pois não se trata apenas da estranheza das personagens, das leis que nos escapam, dos gestos que ultrapassam os seus autores. Há também aqui uma escrita que se destaca pelo seu rigor limpo, pela sua depuração que denuncia um trabalho moroso de escriba e uma agilidade na construção dos contos que revela um trabalho prévio de encenação, para encontrar no conto um acabamento perfeito. Uma escrita que revela, também, uma leitura (e transfigurada) de autores como Beckett ou Michaux, dos mestres do absurdo na literatura. Atesta-se aqui uma simplicidade na forma narrativa que traduz o labor intenso e escultor da palavra, sem ceder a artifícios nem a efeitos retóricos que lhe retirariam a eficácia do chicoteamento a que aludi no início. Uma estética do choque, ainda, que é resgatada à minúcia, para cumprir a sua função. As palavras são medidas e pesadas com justeza para desencadear o efeito de surpresa constante no leitor, nesse jogo que estabelece com ele, mas sem lhe facilitar a vida. Eis uma escrita convidativa, tal como uma bela e sedutora mulher que insinua, mas não revela, para que o resto do trabalho (e da felicidade) seja o do próprio leitor, na sua descoberta. Sem querer desvendar demasiado do livro, creio que a chave mais justa será aquela que cairá na mão dos leitores mais persistentes, os que seguem o fio que Isabel Ramos nos oferece para que a sigamos. Até ao conto “Não te Esqueças do Guarda-chuva”. A irradiação, a luz prometida virá ao nosso encontro.