Fui informado de que a professora brasileira Luiza Nóbrega me atacou, em termos desabridos, nas redes sociais, acusando-me de ter plagiado as suas ideias sobre a significação de Baco n’Os Lusíadas. O ataque teria derivado da minha conferência intitulada “Portugal, filho de Baco”, proferida no recente lançamento do meu livro Camões e outros contemporâneos, do qual esse texto, adaptado para a ocasião, constitui o capítulo “Luso, filho de Baco”. Fui outrossim informado de que a doutora Luiza Nóbrega não estava presente na conferência mas que alguém que estava informou um amigo que, por sua vez, a informou do meu título e do que terá entendido ter sido o meu tema, desse modo desencadeando por estafetas a sua fúria báquica, sem que me tenha lido ou ouvido.
Não participo em facebooks nem eles me parecem ser o veículo adequado para uma adequada troca de ideias. E se, como me dizem, não era de ideias que ali se tratava mas de insultos caluniosos, também não sou pugilista, nem psiquiatra, nem agente policial. Mas sou um professor de literatura que sempre deu o devido crédito às ideias de quem as tenha tido.
Soube da existência da professora Luiza Nóbrega quando, salvo erro, há cerca de doze anos, me contactou, sobre questões relacionadas com a sua tese de doutoramento, centrada na função de Baco n’Os Lusíadas, onde referia e comentava várias passagens das minhas obras anteriores. A recém-doutorada mostrou, já então, alguma inquietação, presumindo que a minha interpretação estaria a evoluir no sentido do que ela considerava ser uma interpretação sua totalmente original. A qual a levara a uma tentativa de identificação biográfica de Camões com a sua personagem Baco n’Os Lusíadas, que aliás achei interessante, mas que considero incompatível com as complexidades do texto. Se bem me recordo, tentei sossegá-la, encorajando-a a desenvolver o seu pensamento com maior rigor do que havia feito, sem prejuízo do pensamento dos outros. E, portanto, também do meu.
Como é evidente, eu não poderia ter derivado as minhas ideias de estudos seus ainda inexistentes, embora ela pudesse ter beneficiado dos meus, que aliás mostrou conhecer na sua tese, posteriormente publicada em livro. Uma breve cronologia basta para o demonstrar:
- Helder Macedo, Camões e a Viagem Iniciática, Moraes, Lisboa, 1980. Edição revista e aumentada, Lumme, Rio de Janeiro, 2012; abysmo, Lisboa, 2013.
- ………., “Camões protagonista de Os Lusíadas”, Quaderni Portoghesi, 7–8, Pisa, 1980. Separata.
- ……….,”O Braço e a Mente: o Poeta como Herói n’Os Lusíadas” (Colóquio Camões e a Civilização do Renascimento, Paris, Outubro, 1980); texto publicado em Arquivos do Centro Cultural Português, XVI, Paris 1981. Separata
- ……….,.The Purpose of Praise: Past and Future in The Lusiads by Luís de Camões, (Inaugural Lecture in the Camoens Chair of Portuguese, 1982) King’s College London, 1983.
- ………., “Os Lusiadas: celebração épica como crítica pastoril” (“V Reunião Internacional de Camonistas”, Universidade de São Paulo, Julho, 1987); Actas, São Paulo, 1992.
- Fernando Gil e Helder Macedo, Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português, Campo das Letras, Porto, 1998 (Prémio Jacinto do Prado Coelho da Associação Internacional de Críticos Literários e Prémio do PEN Clube Português)
- Luísa Nóbrega, Apresentação da tese de doutoramento na UFRJ, 2001
- Luísa Nóbrega, Publicação da tese em livro, 2008.
Em 1980, no livro Camões e a Viagem Iniciática (além de várias outros aspectos d’Os Lusíadas) eu tinha feito uma associação de Vénus com uma viagem ascensional para o “amor sublime” e de Baco com uma degradação no “baixo amor”, sendo esses opostos reconciliados no “amor misto” da Ilha do Amor. Também sugerira uma auto-identificação autoral com a figura mítica de Sileno, “a estranha divindade rústica da Antiguidade, filho da Terra e de Mercúrio, o deus da eloquência que, curiosamente — e talvez significativamente no contexto mitológico do poema — foi o preceptor de Baco e companheiro de muitas das suas aventuras” (p. 97). Também desenvolvi outros aspectos relacionados a Baco em ensaios subsequentes sobre Os Lusíadas.
Em 1998, no livro que escrevemos em colaboração, Viagens do Olhar, Fernando Gil propõe uma instigante e inovadora interpretação de Baco n’Os Lusíadas (Capítulo I, pp 13–69), onde analisa aquilo que designa como “o malogro dos Lusíadas” e, nesse contexto, o que caracteriza como “a resistência de Baco” à possibilidade de Camões o resolver enquanto personagem. E, de facto, Baco é o grande problema que fica por resolver no poema. No entanto, da minha diferente embora, nalguns aspectos, convergente perspectiva de leitura, só teria havido malogro n’Os Lusíadas se Baco não tivesse resistido, se não fosse uma personagem deixada por resolver. Como eu o entendo, o Baco d’Os Lusíadas corresponde às incertezas de Camões sobre o futuro de Portugal. A decadência de Baco — a potente divindade fundadora transformada num corrupto, enfraquecido e malevolente manipulador de enganos — é um aviso para os contemporâneos portugueses de Camões.

Fernando Gil constata que “a Ilha de Vénus é abertamente e exclusivamente dionisíaca: ou seja, Vénus inimiga de Baco dá por prémio aos navegantes os valores de Baco”. Nisso sempre estivemos de acordo. Mas não quando considera que, por essa razão, a Ilha do Amor corresponderia ao triunfo de Vénus sobre um Baco que, mesmo se a contragosto, se houvesse tornado num “cúmplice dessa Vénus protectora de Gama como antes fora de Eneias […]” A minha diferente conclusão é que nem Baco nem Vénus são vencidos ou vencedores. Segundo entendo, ambas as divindades representam ideais traídos pela História: a fundação mítica de Portugal personificada no antigo poder de Baco e uma mitificada refundação de Portugal na Ilha de Vénus. A recuperação desses ideais teria sido o verdadeiro propósito da aventura épica guiada por Vénus não para a Índia encontrada mas para a dionisíaca Ilha do Amor ainda por encontrar.
E este foi um dos principais temas que desenvolvi no capítulo “Luso, filho de Baco” no meu novo livro de ensaios, bem como, em versão ligeiramente mais curta, na conferência “Portugal, filho de Baco”. Partindo portanto, mesmo quando em discordância, da inovadora leitura de Fernando Gil, que me fez repensar (julgo que amplificar e melhorar) alguns aspectos do que eu havia escrito sobre o conflito entre Baco e os seus “descendentes” (bem como entre Baco e Vénus) em estudos anteriores.
Mas por isso incorrendo no que me dizem ter sido a estridência insultuosa da doutora Luiza Nóbrega e dos seus amigos de facebook. Deixemo-los porém ficar assim.