Walter Benjamin e Jacques Derrida: Considerações em torno da parábola Diante da Lei

O princípio de acordo com o qual estatuo: a culpa está sempre acima de qualquer dúvida. (Kafka, Na Colónia Penal, 2004, p. 186)

Assim, como o diz Kafka, existe uma esperança infinita, simplesmente ela não é para nós. Esta frase contém realmente a esperança de Kafka. É a fonte da sua irradiante serenidade. (Benjamin, Briefe II, 1993, p. 763)

Kafka

Franz Kafka

Permanece algo de obscuro e profundamente opaco nos textos de Kafka, mesmo se existe um caudal de interpretações e de críticos que se debruçaram sobre a sua obra. A literatura esconjura demónios, sabemo-lo, e não apenas do indivíduo (o escritor), mas também da sua própria época, exprimindo uma inquietação que não encontra repouso. Uma angústia que nasce da própria contradição do pensamento, insinuando-se nas suas dobras, reclamando um lugar na linguagem, onde o sonho e a profecia se aninhem à espera do seu tempo, para despertarem. Seguramente, Kafka é um caso assim, em que a literatura contém uma dimensão inesperada e irradiante, pelo seu poder imagético e alegórico, que não cessa de nos surpreender e de nos interpelar. Walter Benjamin, como Scholem e Derrida não escaparam ao seu chamamento, como tantos outros. É dessa relação que se dá conta, aqui, desse movimento para o que se manifesta no seu texto.

Sabemos que a lei é uma das problemáticas que mais debate tem provocado no pensamento contemporâneo judaico, pelo modo como ela se enleia com o pensamento filosófico e com a literatura, profundamente impregnada na tradição e na sua cultura, pelo modo como persiste nas interpretações e nas leituras dos seus comentadores. Mesmo no caso de intelectuais que não professaram o judaísmo, como no caso de uma geração de jovens alemães (incluindo o próprio Walter Benjamin e Franz Kafka) dos inícios do século XX, não podemos considerá-los alheios à sua tradição. Relembro, a título de exemplo, a Carta ao Pai, de Franz Kafka, onde o autor acusa duramente o progenitor pelo facto de este não lhe ter transmitido senão uma visão esvaziada da sua religião. Nos seus Diários, essa recriminação também aparece com frequência. Em Scholem (que se voltou para a teologia judaica), a recriminação é clara, contra o seu pai, decidindo-se Scholem, ainda muito jovem, a sair de casa e a romper a sua relação com o progenitor. A procura de uma identidade cultural, numa época em que o laicismo e o niilismo assombravam a cultura e o pensamento clássicos, era o que os movia, ao mesmo tempo que preparavam o caminho para a modernidade. O reconhecimento de uma nova era, certamente, mas fazendo-se acompanhar do respeito pela sua tradição[1]. Por isso, encontrávamos nas suas preocupações os temas que se enraizavam numa profunda tradição judaica e teológica, como o da linguagem, da lei, da história, etc.

No que toca a Kafka, a questão da lei é um espectro que é transversal a toda a sua obra, estruturando-a de forma rizomática e podemos encontrá-la nos seus romances como o Processo, onde a sua personagem Joseph K encarna a impotência da luta do homem contra uma lei transcendente e que não tem rosto (mas cuja presença é inegável), revelando-se a sua natureza como enigmática e acima de toda a justiça humana. Joseph K acaba por “morrer como um cão” no romance, sem que nunca chegue a saber porque é julgado, num longo e bizarro processo.

colónia penalTambém no conto A Colónia Penal nos deparamos com a questão da lei, mas, desta vez, a lei é inscrita no corpo por um “estranho aparelho” (Kafka, Na Colónia Penal, 2004, p. 179) que se avaria, uma máquina que inscreve na carne do condenado a lei, mas que se transforma num instrumento mortal, massacrando e matando as suas vítimas e o seu próprio criador e principal defensor. Ainda que apareça noutros contos, é na parábola Diante da Lei que ela nos aparece na sua forma mais críptica, quer na figura do homem que persiste sereno e submisso diante da lei, como na do guardião da mesma.

Aquilo a que me proponho, neste texto, é a averiguação, quer de Walter Benjamin, quer de Jacques Derrida, em torno desse conto kafkiano Diante da Lei (Vor dem Gesagt). Nos dois autores, as aproximações são diferentes, é certo, mas o nó do problema tem afinidades que se prendem também à questão da tradição judaica, para além dos aspectos literários. Se o início da questão, em Benjamin, se enleia com a questão da tradição e com a própria noção de experiência (Erfahrung) que aí se apresenta, de forma intrínseca, como explicaremos, para Derrida já o início da sua reflexão se coloca na presunção da autoria (Derrida, 1985, p. 102), para nos conduzir a uma ampla análise sobre o que é a literatura e o que nos permite dizer que Diante da Lei é um texto literário[2]. O que constitui a literatura enquanto tal, é a complexa pergunta que aqui se desdobra.

Walter Benjamin

Walter Benjamin

Sabemos que Walter Benjamin publicou o seu ensaio sobre Franz Kafka em 1934, por altura do décimo aniversário da morte daquele, mas a sua preocupação é muito anterior, pelo menos como ela se revela numa carta que dirige a Scholem, em 21 de Julho de 1925 (Benjamin, Briefe I, 1993, p. 397), onde escreve sobre o desejo de se dedicar a Kafka e de lhe dedicar uma recensão sobre algumas obras póstumas de Kafka e onde diz assim: “Hoje, como há 10 anos, a sua curta história «Diante da Lei» é desde sempre uma das melhores que, a meus olhos, existem em alemão.”

Walter Benjamin planeava dedicar a sua atenção a um trabalho de fôlego sobre o escritor, pela correspondência que trocou com Gershom Scholem, sobretudo no ano de 1938, dois anos antes da sua trágica morte. Nessa altura ocupavam-no ainda os estudos sobre Charles Baudelaire e sobre a modernidade e o Livro das Passagens, que viria a ser posteriormente publicado. E também acabara de sair a obra de Brod sobre Kafka[3], a qual não impressionou Walter Benjamin. Este criticava-lhe a ausência de distância crítica, dizendo que a atitude de Max Brod era a de uma “perfeita bonomia” (Benjamin, Briefe II, 1993, p. 756/758). Faltava-lhe, ainda, o rigor crítico que permitiria a análise do carácter simbólico e alegórico da obra de Kafka, que parecia tão importante aos olhos de Walter Benjamin. E foi precisamente o carácter alegórico da parábola “Diante da Lei”, inscrevendo na literatura contemporânea essa estranheza, que fascinou Benjamin, mas igualmente Jacques Derrida, os dois autores aqui abordados, em particular.

No seu ensaio sobre Kafka, Benjamin ressalta a importância do gestus[4]. É nele que se encontra, de acordo com Benjamin, o elemento decisivo ou o próprio centro da acção, encerrando em si essa inquietação. Estabelecendo o gesto humano como o limiar próximo da animalidade, Kafka retira-lhe os seus suportes tradicionais e instaura um território estranho, opaco e enigmático e que se transforma numa fonte de reflexão.

Gregor Samsa

Gregor Samsa

A tradição mística conforma, assim, o universo kafkiano, como nota Benjamin, na sua carta a Scholem, mas num sentido negativo, pois o mundo kafkiano é o do indivíduo privado da sua essência, do qual Gregor Samsa constitui a mais acabada expressão dessa privação de experiência e, também, da possibilidade de comunicação. Michael Löwy, no seu ensaio sobre Kafka, Rêveur Insoumis, dá-nos conta dessa dimensão, pela presença da teologia negativa, que é, do seu ponto de vista[5], extremamente importante para explicar a problemática religiosa nos romances kafkianos (Löwy, La religion de la Liberté et de la Parole Devant la Loi, 2004, p. 103). Em suma, como conclui Löwy:

(…)os escritos kafkianos descrevem um mundo entregue ao absurdo, à injustiça autoritária e à mentira, um mundo sem liberdade, em que a redenção messiânica não se manifesta senão negativamente, pela sua ausência radical. (Ibidem).

Não apenas se apresenta nesse mundo uma teologia negativa, como também “uma espécie de utopia negativa”, numa relação directa.

E sobre a obra de Kafka diz ainda Walter Benjamin:

A obra de Kafka apresenta uma tradição que adoeceu. Por vezes, quis-se definir a sabedoria como o aspecto épico da verdade. Trata-se de tomar a sabedoria como por um património da tradição; é a verdade na sua consistência hagádica.

É esta consistência da verdade que se perdeu. Kafka foi de longe o primeiro a confrontar-se com esse facto (Benjamin, Briefe II, 1993, p. 763).

Essa é também a opinião de Löwy, que corrobora Benjamin quando afirma:

Para compreender a espiritualidade de Kafka, tal como ela se exprime de forma paradoxal, mas brilhante, na parábola Diante da Lei, será necessário situá-la no quadro geral da «crise da tradição» do judaísmo central-europeu (Löwy, La religion de la Liberté et de la Parole Devant la Loi, 2004, p. 122).

Mais do que um efeito de secularização, no sentido em que Max Weber o toma, Löwy refere-se a “uma interiorização ética da religião” (Ibidem), no sentido em que consiste numa revalorização de uma tradição ameaçada pela secularização.

Para Walter Benjamin, o traço genial de Kafka foi o de tentar um caminho diferente: “renunciar à verdade, para não abandonar a transmissibilidade” (Benjamin, Briefe II, 1993, p. 763), o outro elemento nuclear da Haggadah[6]. Por essa razão, diz Benjamin, as histórias kafkianas são parábolas, preservando o cunho da transmissibilidade, mas renunciando à sabedoria. O que nos é acessível, então, são esses elementos desintegrados e que deixam à vista, alegoricamente (e por isso mais visíveis), a desintegração intrínseca, o esboroamento de um ideal de verdade que se liga à ideia de sabedoria.

Mas, como Benjamin nota e bem[7], é preciso renunciar a uma certa ideia de verdade, tomada como uma teia que enreda e nela prende os que a perseguem como a uma presa. A verdade oculta-se e tentar caçá-la pode transformar-se numa experiência mortífera[8]. Essa é a lição fundamental a retirar da fábula de Saïs, metaforizando a ideia de verdade como “morte da intenção” (Ibidem).

Também a reclamação do conhecimento da lei se configura como um gesto impossível ao homem, sem deixar de ser uma das suas exigências fundamentais, constituindo, precisamente por isso, uma das aporias por excelência do judaísmo. Ainda a propósito, relembro o paradigmático texto de Walter Benjamin, A Crítica da Violência, redigido em 1921, onde o autor define, sobretudo nas últimas páginas do texto, o carácter incognoscível da lei, pelo seu carácter divino e transcendente ao homem. Mas é nela, na lei divina, que se funda toda a possibilidade da lei e do direito humanos. Eis o paradoxo que habita o texto de Kafka. A exigência do conhecimento da lei (e da verdade) e a sua impossibilidade incontornável.

Este paradoxo assume a forma do absurdo na escrita de Kafka, em que as suas parábolas se configuram como modos alegóricos de apresentação do paradoxo e da impossibilidade, da insustentabilidade, no plano do humano, de viver a experiência da justiça. Todas as suas personagens assumem esta falta, como habitantes de um território indefinido. Daí que as suas personagens se situem, muitas vezes, no limiar do humano e do animal, do qual Gregor Samsa ressalta pelas suas características que revelam essa queda do humano, tanto no aspecto físico, como na impossibilidade de coexistir com a família e com ela comunicar. E é dessa impossibilidade que decorre toda a sua escrita de Kafka, como uma dilaceração no âmago do humano. E a expressão dessa dilaceração é a da vivência do absurdo, de uma espécie de “loucura mansa”, já que as suas personagens se submetem serenamente aos secretos desígnios da lei e do seu destino. A esse propósito diz Benjamin, na célebre carta a Scholem:

A loucura é a essência das personagens preferidas de Kafka, D.Quichote (…)os animais. (Ser animal, para ele, significa sem dúvida simplesmente ter renunciado, por uma espécie de pudor, à figura e à sabedoria humanas (…) (Benjamin, Briefe II, 1993, p. 763).

Michael Löwy vai mais longe nessa análise, falando de um “esmagamento do indivíduo («como um cão»)[9]” (Löwy, La religion de la Liberté et de la Parole Devant la Loi, 2004, p. 104) e essa é a consequência mais devastadora de um universo entregue à catástrofe que resulta, na opinião de Löwy, da confluência entre a teologia negativa e a utopia negativa.

 As figuras kafkianas, como por exemplo o homem de Diante da Lei, são profundamente dolorosas e serenas, numa resignada espera do que nunca chegue, ainda que seja apenas a compreensão ou o conhecimento. Encontramos essa serenidade na personagem de Diante da Lei e n’O Processo, em Joseph K, mas também a encontramos no conto A Colónia Penitenciária:

O condenado tinha de resto um ar tão submisso que se poderia deixá-lo correr livremente pelas vertentes e, quando a execução estivesse iminente, seria necessário apenas assobiar-lhe para que ele viesse. (Kafka, Na Colónia Penal, 2004, p. 179).

O texto de Derrida sobre a parábola Diante da Lei parte desta premissa, a da tradição judaica e a do olhar de Kafka sobre a lei, mas ao autor interessa-lhe muito mais analisar o carácter literário (se ele existe e como pode ser encontrado nesse texto) da parábola de Kafka. Como o autor reconhece, Diante da Lei é a história da inacessibilidade da lei, mas também contém em si uma outra inacessibilidade, que é a da própria narração e é esta que interessa, em particular, a Derrida:

Duma certa forma, Vor dem Gesetz é a narração desta inacessibilidade, desta inacessibilidade da narração, a história desta história impossível, o mapa deste trajecto interdito: não há itinerário, não há método, não há caminho para aceder à lei, naquilo que ela possa ter tido lugar, o topos do seu acontecimento. (Derrida, 1985, p. 114).

Ao tentar entrar na lei, como escreve Kafka, “O homem do campo não estava à espera deste tipo de dificuldades; a lei devia, pensa ele, ser acessível a qualquer pessoa e sempre que esta quisesse (..)” (Kafka, Diante da Lei, 2004, p. 233). É aqui que se instala o paradoxo e, por conseguinte, o absurdo da situação, pois, apesar de achar que o acesso à lei devia ser um caminho acessível, decide esperar até que lhe seja dada autorização. Sim, o homem do campo tem razão, pois a lei deveria ser universal, acessível sempre e para cada um. Aqui, Derrida recorre à legibilidade da lei (p. 115), como sendo a condição de possibilidade de acesso à mesma. Esse pode (e deve ser) a ideia que Kafka tem em mente: a interpretação e o conhecimento da lei escrita, legível. Mas essa legibilidade como condição de acesso não garante, no ponto de vista derridiano, o acesso à lei:

(…) a leitura pode com efeito revelar que um texto é intocável, propriamente intangível, porque é legível, e ao mesmo tempo ilegível, na medida em que a presença nele de um sentido perceptível, apreensível, permanece também roubado como a sua origem. (Derrida, 1985, p. 115).

Deste modo, frisa Derrida, “a ilegibilidade não se opõe mais à legibilidade” (p. 115). A ilegibilidade ou o não-acesso ao sentido do texto faz dissipar a possibilidade do caminho, tornando a lei um interdito. Uma condição ínsita à própria visão, mais do que à leitura, para sermos correctos. Há qualquer coisa que se dá a ver – e Kafka mostra isso precisamente, no texto – mas a que o homem do campo não tem acesso. À força de olhar para a entrada, cujo guardião impede o acesso, “reconhece agora na escuridão um brilho que irrompe da porta da lei de uma forma indelével” (Kafka, Diante da Lei, 2004, p. 234). E se o brilho vislumbrado revela algo, que ele não compreende, pois a sua vista está fraca devido à velhice, também já não lhe resta muito tempo de vida, minando-lhe assim toda a possibilidade do acesso à lei.

Na verdade, ele quer entrar na lei, quer vê-la e tocá-la, quer aproximar-se da lei para a compreender, mas ela não se deixa tocar nem ver, exige ser decifrada, algo que ele desconhece. E Kafka alude, logo no início do texto, ao facto de a lei ser acessível a todos, pois “o portão que dá acesso à lei está como sempre aberto” (Kafka, Diante da Lei, 2004, p. 233). Se a porta está sempre aberta, mas se a lei permanece inacessível e interdita a porta, pela ameaça dos guarda-portões cada vez mais poderosos, então a questão deve concentrar-se na decifração do texto e da lei, dos seus sinais. Essa é a interpretação de Derrida.

Também Henri Meschonnic, num ensaio magnífico, “L’allégorie chez Walter Benjamin, une aventure juive”, estabelece a relação entre a estrutura da alegoria e a tradição judaica. Nesse mesmo texto, a propósito da afinidade de Benjamin com Kafka, Meschonnic põe a tónica na questão da parábola como forma privilegiada de apresentação da inacessibilidade do sentido. Citando Benjamin, na sua obra sobre Kafka, Franz Kafka, a Propósito do décimo aniversário da sua morte, Meschonnic afirma: “A parábola, como a alegoria, faz uma poética de inacessibilidade do sentido.” (Meschonnic, 1986, p. 721). Uma “poética do fracasso”, também, como acrescenta Meschonnic[10]. E a alegoria é a apresentação dessa catástrofe. Mas a relação com a alegoria, no autor, não se esgota aqui, pois a tradição mística é convocada na parábola kafkiana[11]. Desde logo, ela aparece na linguagem, pois, para Benjamin e Kafka o hebreu configurava-se como uma língua-alegoria. Por ser uma língua sagrada na tradição judaica ele é inacessível (Meschonnic, 1986, p. 722). A lei a que Kafka se refere é a lei judaica, escrita na língua original. É também a língua da tradição, da Haggadah. Quando Benjamin escreve a Scholem, na carta de 29 de Dezembro de 1920, que “entrar no hebreu tem um alcance incalculável” (Benjamin, Briefe I, 1993, p. 249), é justamente desse acesso que ele fala, o qual permite decifrar, não apenas os textos sagrados, como também se refere à lei judaica.

Derrida segue outras linhas de interpretação para compreender o texto de Kafka. Mergulha antes na ideia freudiana de interdito, patente na sua obra Totem e Tabu, para nos referir a origem da lei como evento singular, no totemismo, a saber, as duas interdições fundamentais daquele: o assassínio e o incesto. A lei é, em Diante da Lei, a figura dessa interdição. Questiona Derrida se o homem do campo quererá de facto entrar na lei ou no lugar onde ela é guardada. E se o homem do campo se mantém diante da lei, também o guardião o faz, ainda que voltando-lhe as costas. “Eles opõem-se um ao outro de uma parte e de outra de uma linha de inversão da qual a marca não é outra, no texto, senão a separação do título e do corpo narrativo” (Derrida, 1985, p. 118).

Compreender a injunção que aqui se apresenta, o “surgimento da instância intituladora, na sua função tópica e jurídica” (Ibidem), eis o que mais interessou a Derrida. Estar diante da lei, no seu sentido comum, deve ser entendido como o acto de comparecer diante da lei, respeitosamente, diante dos seus representantes, mas sem que isso signifique afrontá-la e isso parece ser, precisamente, a posição do homem do campo. A condição de inacessibilidade que, aparentemente apenas designa o homem do campo, também afecta aquele lhe vira as costas:

Nenhum dos dois está em presença da lei. As duas personagens da narrativa estão cegas e separadas, separadas uma da outra e separadas da lei. Tal é a modalidade desta relação, desta narrativa: cegueira e separação, uma espécie de sem-relação (Derrida, 1985, p. 119).

E especifica Derrida: “o guardião também está separado da lei por outros guardiães” (p. 120). Guardiães que são ainda mais poderosos que ele. Existe uma hierarquia de cujo poder o guardião tem consciência, sabendo que ele próprio é o mais ínfimo deles. A contemplação do terceiro guardião que o antecede, pois ele está de costas para a lei, é-lhe insuportável: “Nem eu posso suportar a mera contemplação do terceiro” (Kafka, Diante da Lei, 2004, p. 233).

Esta distanciação do homem do campo relativamente ao guardião mantém-se sem o recurso à força, pois o homem sujeita-se, apesar da porta estar aberta «fisicamente». Aquilo que o mantém à distância da lei é o discurso do guardião, que impõe a interdição. Mas o homem dispõe, como diz Derrida, “da liberdade natural ou física para penetrar os lugares”, mesmo a lei. Mas ele renuncia à força e recorre à persuasão, ainda que esta não o ajude. Derrida explica, então, porque o homem se sujeita:

Porque a lei é o interdito. Nome e atributo.(…) Ela é o interdito: isso não significa que ela interdita, mas que é, ela própria, interdita, um lugar interdito. Ela interdiz-se e contradiz-se, pondo o homem na sua própria contradição: nãose pode chegar até ela e para ter relação com ela, segundo o respeito, é preciso não, não se pode ter relação com ela, é preciso interromper a relação. É preciso não entrar em relação senão com os seus representantes, os seus exemplos, os seus guardiães. E eles são tanto os interruptores como os mensageiros. É preciso não saber quem é ela, o que é ela, onde está ela ou como se apresenta ela, de onde ela vem ou de onde fala (Derrida, 1985, p. 121).

Apesar da lei ser um interdito, ela deixa que o homem se auto-determine livremente, ainda que esta liberdade se auto-anule por não permitir que o homem entre em relação com ela. O paradoxo evidente contamina a narrativa por um absurdo que é dele consequência. Até porque a entrada diante da qual ele esperava (e esperou toda a sua vida) não era senão destinada ao homem, àquele homem em particular. Verdade suprema que o homem do campo conhece, após questionar o guardião pela razão pela qual mais ninguém quisera entrar na lei. E se, como nota Derrida, este homem, que se posicionara respeitosamente “diante da lei” durante toda a sua vida, se transforma num “fora-da-lei” (p. 122), isso não é senão uma consequência da interdição.

Esta condição de exterioridade mantém-se até à sua morte, numa revelação do carácter transcendente da lei (sem que saibamos de que transcendência falamos aqui, nada sabemos das instâncias que garantem essa distância). O que sabemos seguramente é que “não se chega nunca” (Ibidem) e a lei nunca se dá, ela própria a conhecer. A sua origem mantém-se sempre “fora” da nossa capacidade de conhecimento. Não há, para aquele que espera, diante da lei, “nem veredicto nem sentença” (p. 123) e, na verdade, nem de um processo se tratou, não houve julgamento.

A conclusão de Derrida é que “o homem do campo não é simplesmente sujeito da lei fora da lei, mas é também, no infinito, mas finito, o pré-julgado” (Derrida, 1985, p. 123). O fundamento da lei, à luz deste paradoxo, é atingido pela ilegitimidade. Se o julgamento se sustenta na essência da lei e se ela nunca se dá a ver, também não pode ser determinada, pois “ela subtrai-se a esta essência do ser que seria a presença.” (p. 123). O pressuposto de Derrida é aqui o próprio conceito de verdade de Heidegger.

Para Derrida, que insiste numa interpretação hermenêutica e, sobretudo no reconhecimento de mise en abyme nesta narrativa kafkiana[12], o último parágrafo de Diante da Lei, em que o guardião decide fechar a porta ao homem do campo prestes a morrer, condu-lo à ideia de que “o texto seria a porta, entrada (Eingang), o que o guarda acaba de fechar” (Derrida, 1985, p. 128). Como ele afirma, não saindo do plano hermenêutico, a história Diante da Lei não contaria nem descreveria outra coisa senão o próprio texto.

Ele guarda-se a si próprio, como a lei. Portanto, para Derrida, ele não fala senão de si próprio, não deixando que se penetre no seu sentido. Essa intangibilidade do texto é a sua marca e as palavras do guardião, ao dizer “eu fecho”, constituem a sua identidade, no sentido em que é a assinatura do escritor, que coloca diante nós o seu legado, na sua intangibilidade própria.

A análise derrideana retorna à questão inicial e que era: “O que é que autorizava a julgar que este texto pertence à «literatura». E, desde logo, o que é a literatura?” (Derrida, 1985, p. 130). E essa é a grande questão que liga Walter Benjamin a Derrida. Será possível, ainda, a narração numa época de “crise da tradição”? Será isso, ainda, literatura? Duas formas diferentes de se posicionarem diante do texto kafkiano, mas cujo nó é o mesmo: o do fenómeno literário.

Permanece uma questão de fundo, em toda a interpretação de Kafka, quer no caso de Benjamin, quer de Derrida. Seja qual for a porta de entrada ou o acesso à obra de Kafka, e em particular à sua parábola Diante da Lei, o enigma mantém-se. E o enigma não diz respeito apenas ao conhecimento da lei e ao acesso do homem a ela. O enigma é o do próprio texto, o da sua inacessibilidade, diz respeito ao seu carácter alegórico, a uma visão catastrófica do mundo que empurra o homem para um exílio.

Em rigor, esta visão desamparada contamina toda a experiência humana, condenando-a a uma exterioridade em relação ao sentido da linguagem e que é também o sentido da vida. A catástrofe ou o desastre é isto: o cair para fora da essência, o estar em queda a uma certa visão da tradição. Só a linguagem nos permite o acesso ao mundo e também a uma ideia de experiência verdadeira. Se Derrida se confronta com essa exterioridade do texto e da necessidade da decifração que lhe é intrínseca, isso não é mais do que o reconhecimento dessa exterioridade.

A interdição da lei atesta-nos esse cair para fora do texto e do mundo, para fora da experiência e de nós próprios. E o cair para fora da linguagem arrasta-nos, como Kafka o entendeu de forma notável, para a loucura e para a bestialidade, para a animalidade. Daí que Kafka o diga tão claramente, n’A Colónia Penal, que “a culpa está acima de qualquer dúvida”. Ela dá-nos a dimensão da queda, pois a culpa é o que configura a nossa experiência humana. Com ou sem a possibilidade da restauração. Como uma catástrofe.

Bibliografia

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Benjamin, W. (1993). Briefe II. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.

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Blanchot, M. (1981). De Kafka à kafka. Paris: Gallimard.

Derrida, D. L.-L. (1985). La Faculté de Juger. Em J. Derrida, Prejugés Devant la Loi (pp. 87-139). Paris: Éditions de Minuit.

Kafka, F. (2004). Diante da Lei. Em F. Kafka, Os Contos (pp. 233-235). Lisboa: Assirio & Alvim.

Kafka, F. (2004). Na Colónia Penal. Em F. Kafka, Os Contos (pp. 177-213). Lisboa: Assirio & Alvim.

Löwy, M. (1988). Rédemption et Utopie. Le Judaïsme Libertaire en Europe Centrale. Une étude d’Affinité élective. Paris: PUF.

Löwy, M. (2004). La religion de la Liberté et de la Parole Devant la Loi. Em M. Löwy, Franz Kafka Rêveur Insoumis (pp. 101-123). Paris: Éditions Stock.

Meschonnic, H. (1986). L’allégorie chez Walter Benjamin, une aventure juive. Em Vários, Walter Benjamin et Paris (p. 707/741). Paris: Éditions du Cerf.

[1] Na correspondência destes autores, damo-nos conta das suas preocupações. Ressalto a correspondência entre Walter Benjamin e Scholem, onde partilham os seus interesses e preocupações de juventude, o modo como se vai definindo a trajectória e o percurso de cada um dos autores. Friso, ainda, o seu interesse pela tradução dos tratados cabalísticos, para língua alemã, já que muitos jovens desconheciam o hebreu e podiam, assim, ter acesso aos textos. Chamo, ainda, a atenção para a obra de Michael Löwy, Rédemption et Utopie. Le Judaïsme Libertaire en Europe Centrale. Une étude d’Affinité élective, PUF, Paris, 1988.

[2] Essa é a questão com que Derrida inicia o texto, em “Prejugés”.

[3] A biografia que Max Brod escreveu em 1937, sobre Kafka. Na carta que escreve a Scholem, datada de 12 de Junho de 1938, Walter Benjamin apresenta várias objecções a essa obra.

[4] Como também já o ressaltara na correspondência com Scholem, em 1938.

[5] “Parece-me que o conceito de teologia negativa é efectivamente o único que pode dar conta de forma adequada ao tipo muito particular de problemática religiosa presente nos romances de Kafka. A redenção messiânica – e também, como nós já vimos, a utopia libertária – não aparece nele senão em cruz, desenhada em filigrana pelo negro contorno do mundo presente.”

[6] A tradição judaica que deve ser preservada pela narração.

[7] E desenvolve essa ideia na sua obra Origem do Drama Barroco Alemão, sobretudo no prefácio que antecede a obra e onde apresenta a ideia de apresentação (Darstellung) como um desvio a essa ideia de verdade e de sistema, tal como ela é tida no pensamento tradicional. É também isso que o atrai no pensamento e na escrita kafkiana, um modo de apresentação alegórica da tensão entre a questão da verdade e a da tradição e da consequente transmissibilidade da experiência.

[8] Origem, G.S., 1, Band I, p. 209-210, em que Walter Benjamin define a diferença entre o acesso à verdade e o conhecimento como posse (a nosso ver retomando a distinção platónica entre objecto de conhecimento e objecto de contemplação) e G.S., 1, Band I, p. 216, em que o autor nos fala “da fábula da imagem velada de Saïs, diante da qual sucumbe, no instante do desvelamento, aquele que pensava interrogar a verdade”.

[9] Löwy refere-se à personagem Joseph K, em O Processo.

[10] Além de Walter Benjamin se referir à literatura kafkiana como uma poética do desastre e da catástrofe, em particular no texto referido, também Blanchot refere a literatura kafkiana como “escrita do desastre”, na sua obra L’Écriture du Desastre e em De Kafka à Kafka.

[11] A este propósito, Michael Löwy comparou, na sua obra já anteriormente citada, na página 115, a parábola Diante da Lei aos textos talmúdicos, tanto no estilo quanto no seu espírito, referindo-se aos midrashim (exegeses) e aos haggadoth (narrativas) ou, ainda, aos contos hassídicos, nomeadamente com uma das lendas hassídicas de Nachman de Bratzlev, referida por Buber, e intitulada “O Rabi e o seu filho único”.

[12] Na obra O Processo, nomeadamente no capítulo IX, «Na Catedral», o texto de Diante da Lei, à excepção do seu título, é relatado por um padre e colocado entre aspas. Este padre, como nos diz Derrida (p. 135), não é somente um narrador, mas alguém “que cita ou que conta uma narrativa”. Todo o texto é investido, assim, de um carácter exegético, na tradição talmúdica.

Maria João Cantinho, in Jacques Derrida, ed. Leya, Lisboa, 2015.

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