Jaime Rocha, Lâmina, Língua Morta, Lisboa, 2014
Após a sua «Tetralogia da Assombração», composta por Os que vão morrer, Zona de Caça, Lacrimatória e Necrophilia, volumes publicados entre 2000 e 2010, saiu ainda A Rapariga sem Carne (2012), o terceiro volume de uma «Trilogia do Mal», da qual fazem parte A Loucura Branca (publicado em 1990 e reeditado em 2001) e Anotação do Mal (2007), vencedor do Prémio Pen Clube Português de Ficção. O autor publicou em 2013 Mulher Inclinada com Cântaro. Autor versátil, Jaime Rocha move-se com destreza entre os géneros da poesia, da dramaturgia e do romance, que se constituem como diferentes ângulos da sua obra e que ocupam diferentes lugares na sua relação com o real e a linguagem. Se o teatro lhe aparece na relação mais directa com a realidade e com o quotidiano, já a poesia ocupa outro espaço e, ao falar da articulação entre os géneros, numa entrevista concedida a Raquel Ribeiro, ao jornal Público, a 21/12/2012, o autor diz: “A poesia aparece-me”. E na mesma entrevista diz que a poesia tem uma dimensão mais abrangente e onírica: “há a natureza, o mar, o simbólico. A paisagem.” (Ribeiro 2012).
A intensidade metafórica da sua obra, como se verá, é a matriz deste livro, que confirma o percurso de Jaime Rocha como uma voz única na poesia portuguesa actual. Os poemas que compõem o livro já tinham sido anteriormente publicados em antologias, jornais e revistas várias, no período que vai de 1990 a 2013, correndo o risco da dispersão. Jaime Rocha reuniu-os e reestruturou-os, dando ao seu livro uma organicidade própria. É composto por quatro ciclos de poemas: “Ciclo das aves”, “Ciclo do vento”, “Ciclo da música” e “Ciclo erros”. Cada um dos ciclos termina com um poema de homenagem, dedicado a um poeta (Fiama, Sophia, Ruy Belo e Cesariny). Iniciando o livro com um poema em que se vislumbra um título algo profético, “A Língua dos Anjos” (p. 5), termina-o com um poema elegíaco, dedicado a Sylvia Plath e Elisabeth Siddal (a trágica amante de Dante Rossetti) (pp. 99/102) e outro ainda, intitulado “Ruínas” (pp. 103/104).
Tal organização confere à obra uma estrutura forte, ao nível da sua composição, onde os núcleos temáticos nos aparecem claramente definidos. E a morte constitui a sombra que paira em toda a obra, sob todas as formas: a humana, a da natureza, a da própria luz, num universo poético contaminado pela devastação apocalíptica. A obra é, nesse sentido, alegórica, o que é sublinhado pelo próprio título, no modo como se define um procedimento estético. O olhar do poeta é uma “lâmina” que atravessa, não apenas os corpos, mas o próprio real, dissecando-o, procurando aceder ao que foi outrora o mistério da vida e tentando resgatá-lo, integrando-o no poema.
Retome-se, a esse propósito, uma entrevista de Jaime Rocha, a que o jornalista Hugo Pinto Santos se referiu no seu artigo do Público, de 3 de Outubro de 2014 (Santos 2014). Nessa entrevista, que foi recolhida por Ana Marques Gastão em livro e publicada pela editora Afrontamento, o poeta afirmava: “As palavras inscrevem-se no poema como o sangue que corre de uma ferida. Essa ferida começa a sarar, mas por qualquer razão – há aqui um destino, um sinal – volta a abrir e o sangue regressa (…). O sangue corre-nos por dentro por algum motivo, não se vê, mas sabemos que lá está, em movimento. Ao poeta não lhe resta senão cumprir um desígnio: cortar a pele, as veias com uma lâmina e deixar soltar o sangue. É a dor subterrânea, mas não clínica, antes surreal, visionária, inquietante, tal como a vejo em William Blake.” (Gastão 2011, 292).
A ideia de uma ferida profunda e incicatrizável, que tem o seu lugar na linguagem do poeta, é a de um mal-estar ou de uma inquietação profunda, assumindo uma feição melancólica e irremediável, à qual apenas a alegoria consegue dar uma configuração poética expressiva. A expressão dessa dor assume um carácter surreal, cuja imagética fortíssima é inspirada no universo da pintura pré-rafaelita e com a qual o poeta conviveu durante tanto tempo. Mais uma vez (e não é por acaso), reaparece a figura de Elisabeth Siddal, uma figura tutelar da sua poesia, nomeadamente da “Tetralogia da Assombração”.
Logo no primeiro poema, “A Língua dos Anjos”, cujas linhas intertextuais são evidentes, bem como o seu tom elegíaco, numa afinidade com a poesia de Rilke, o sujeito lírico enuncia a condição do poeta: “São os poetas que assim falam,/terrivelmente dentro da paisagem.” (p. 5). Essa paisagem é simbólica e surreal e não uma paisagem real, como compreenderemos pela leitura que se segue: “Porque não se conhece a língua dos anjos. /E o mesmo poeta, ou outro em vez dele,/escreveu que a paisagem se tornou silenciosa/porque estamos infinitamente mortos/sobre um fundo dourado.” (p. 6).
Se a morte é uma figura central na poesia de Jaime Rocha, o silêncio é a sua manifestação, transportando consigo, não a presença luminosa do ser, mas uma melancolia acerada e reveladora do mal: “É sobretudo um silêncio, uma coisa maligna” (p. 29). Essa mudez que atravessa a natureza e que desapropria as coisas da sua pertença, que retira ao homem a sua humanidade e o deixa à mercê da devastação, é também um vento gelado que petrifica tudo aquilo em que toca: “É deste modo que o vento rasteja/na direcção do seu corpo e queima/pelos lados junto a um cipreste.” (p. 56). Esta calcinação do corpo e da própria natureza, associada à metáfora do cipreste remete-nos imediatamente para uma mesma ideia: a da morte. O poema seguinte consubstancia e reforça esta metáfora: “Porque é do vento que as hienas estão/ à espera (…)”. Também a presença da noite intensifica este silêncio e a devastação apocalíptica, impregnando todos os elementos de um carácter espectral.
Outro dos elementos privilegiados neste livro, melancólico por excelência, é o da cidade, que aparece logo no primeiro ciclo, “Ciclo das Aves”. Esta cidade é onírica, “(…) É uma cidade inventada/com um tesouro e uma mulher desenhada/pelas palavras” (p.9) e que, por vezes, se assemelha a um obscuro animal, que respira, como no verso “Uma cidade com pele autêntica” ou, ainda, nos versos da página 23, “A cidade acorda como sempre/debaixo de um suor agitado”. Este espaço inquietante configura o lugar da decadência do humano ou da própria morte, marcado pela presença de ratos, de baratas, de corvos e “(…) onde tudo/aparece envolto numa espécie de lixo/acumulado.” (p. 15). Vislumbra-se aqui, também, a figura do trapeiro de Baudelaire, de O Vinho dos Trapeiros, que atravessa a cidade recolhendo o que os outros não querem: “O homem afasta-se então das algas e volta/ à cidade, vasculhando os restos de comida.” (p. 29).
Saturnina figura, o trapeiro é o que vagueia pelas ruas, acometido pela solidão das cidades e pela noite silenciosa, elemento denso e narcótico que invade toda a atmosfera, evocando a atmosfera simbolista de Maeterlinck ou de Edgar Allan Poe. A cidade é também, como em Baudelaire ou em Poe, o lugar do mal, do crime, da danação e da miséria humana. O lixo aparece aqui como a própria alegoria do que de pior traz consigo a cidade, cobrindo tudo, mas que é recolhido (e também devorado) pelas aves, num cenário apocalíptico: “Tudo é recolhido pelos pássaros./São eles que coleccionam o que resta da morte.” (p. 27). As aves sobrevoam as ruínas quando já nada sobrevive, mas a visão da devastação da guerra e da própria morte se lhes torna insuportável, como no poema da página 33: “Apenas algumas aves/voavam pelas ruínas, mas também/fugiram porque era insuportável/poisar sobre os despojos da guerra.”. Face à presença do lixo, do plástico e dos destroços, das ruínas, reveladoras de um mundo doentio e onde o mal se apresenta constantemente, aparece a força da natureza, num jogo de contraposição, o que lhe confere uma carga imagética inesperada: “(…) Os pedreiros não têm/braços para todo o lixo. Nada/distingue as ruas de um grande/vale de narcisos.” (p. 24).
A figura da mulher e a da delicadeza feminina aparecem como elementos que amenizam a paisagem desolada e vazia: “Surge do vazio e beija o rosto/do lenhador, um beijo de morte,/como uma hera enrolada a uma estátua./O seu desejo é a sombra da mulher, /o rasto dos seus sapatos, a dança que/ela executa com um cão.” (p. 55). A mulher é, aqui, associada à força da natureza, a que possui os segredos da terra, conferindo assim uma imagem de serenidade a um mundo assombrado: “Uma mulher aguarda/essa água que transforma as plantas e os/ombros num jardim.” (p. 73). Ecoam também nestes poemas as trágicas mulheres/viúvas da Nazaré, figuras que povoam o imaginário do poeta desde a sua infância: “A mulher tapa-se com um véu preto. Os seus/pés sobre as lajes transformam o frio num/incêndio e os sons voltam a nascer no corredor/de uma casa como se por ali passasse um comboio.” (p. 74).
Ainda que os poemas de homenagem a poetas como Fiama, Sophia, Ramos Rosa e Cesariny sejam diferentes dos poemas que compõem os ciclos, o último poema do livro, “Ruínas”, retoma o fio condutor de Lâmina, pela imagética que o estrutura, esse modus operandi próprio da alegoria e que atravessa a obra de Jaime Rocha. Nesse poema, tudo se apresenta desfigurado, destroçado e arruinado, num “espaço de morte onde vai um corvo/comer todas as manhãs” e onde “passa um rio que está sujo/e que mostra ao longo das margens mais/de duzentos peixes mortos.” (p. 103). Esta visão de uma natureza decadente é, em si, um olhar laminado e cortante que luta contra o embelezamento artificial que se apresenta na ideia de progresso. Pelo contrário, o olhar do sujeito lírico dá a ver um mundo caótico e em decomposição, votado à morte. Só ao poema, numa construção em que a memória ocupa o seu centro, cabe a restauração do mesmo.
Rilke, na primeira das suas Elegias de Duíno, perguntava: “Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos?” (Rilke 1993, 29). Ciente dessa indagação e da sua inevitabilidade enquanto poeta, aquele que fala “terrivelmente dentro da paisagem”, Jaime Rocha retoma-a no primeiro poema deste livro, respondendo: “Ninguém sabe que língua têm os anjos”. O diálogo é claro, bem como a resposta, pois ninguém nos ouvirá, neste mundo arruinado e que os deuses e os anjos parecem ter abandonado. Ainda assim, ao poeta é irrecusável a fala, na sua condição mais essencial, a de um amor que nos liga às coisas, aos seres. Trazê-lo à linguagem e cantá-lo é a tarefa daquele que se entrega ao limite do dizer, correndo o risco de ficar à mercê de “um soluço obscuro: o soluço do homem/em frente do seu próprio rosto” (p. 6).
Maria João Cantinho
Referências:
Gastão, Ana Marques. O Falar dos Poetas – Entrevistas. Lisboa: Afrontamento, 2011.
Ribeiro, Raquel. “A Rapariga sem Carne.” Público, Dezembro 2012: 20.
Rilke, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993.
Santos, Hugo Pinto. “Uma Espécie de Arte Venenosa.” Público, Outubro 2014: 29.