Educação: um exercício de redução?

Dirão que a situação não difere muito do que acontece aqui, já que se instalou um fosso entre o ensino para pobres (escola pública) e o ensino para ricos (privado). Mas a verdade é que mesmo a classe média-alta não perdeu a esperança na qualidade do ensino público e até o defende, contrariamente ao que era expectável, após a polémica da suspensão do financiamento estatal ao privado. Enquanto assim for, estaremos salvaguardados do que está em vias de acontecer no Brasil, com uma proposta catastrófica do governo de Temer para acabar com as disciplinas de humanidades no ensino médio (que corresponde ao nosso secundário). Tenho dúvidas se ela passará na escola pública, embora tema que isso aconteça, mas haverá certamente uma maior resistência no ensino privado, já que quem o frequenta possui maior capacidade financeira e tem em vista seguir o ensino superior.

Por cá o debate tem sido intenso e até bizarro, com algumas luminárias, que deveriam ter alguma responsabilidade, a defender a extinção da história e da filosofia no ensino secundário e, até, no superior. Justificações que são apresentadas? Quase sempre a tão propalada inutilidade dessas áreas na nossa vida. Que sejam inúteis compreende-se, num contexto em que o nosso modo de vida, esvaziado e reduzido às estatísticas económicas e numéricas, se cinge ao paradigma do modelo político e económico do neo-liberalismo, guiado sempre pela obtenção de riqueza material e pela produtividade, pela cegueira dos défices, mesmo que para os atingir se permita o sacrifício de 90% da população.

O modelo neo-liberal não conhece o pessimismo, apostando numa linguagem que se reconhece nos conceitos de empreendedorismo, de iniciativa empresarial, de trabalho até à exaustão como modo de vida, propiciando o aparecimento de hordas de escravos que não se questionam sobre a sua própria forma de viver nem sobre os salários que recebem ou, menos ainda, sobre os direitos que possuem enquanto trabalhadores. Ainda que o século XX, em plena ascensão capitalista, tenha proporcionado o desenvolvimento da consciência social dos trabalhadores, o XXI será caracterizado pela sobrevivência, seja a que custo for, dos trabalhadores, espoliados dos seus direitos e explorados impiedosamente. Vemos o reflexo disso na forma como os mais jovens começam a trabalhar sujeitando-se, não apenas aos estágios não pagos, como a salários obscenos e nada correspondentes às habilitações que possuem.

Por isso (e por muitas mais razões), não é vista sem suspeita esta ideia de os jovens estudarem disciplinas que não só lhes darão conhecimento do passado e dos movimentos colectivos (veja-se no Brasil a sociologia), como também as que permitem a agilidade mental e a possibilidade de aprendizagem de argumentação e de discussão sobre as questões vitais do quotidiano. Encharquem-se então os jovens com tecnologia, retire-se-lhes a capacidade de concentração e de leitura, empurremo-los para os fenómenos de entretenimento de massa e, sim, massifiquem-se todos estes jovens, de forma a que a manipulação possa surtir o seu efeito e reduzi-los ao “pensamento do imediato”, do fácil e do óbvio. Em suma, das coisas úteis que, um dia se revelarão um pesadelo, reflectindo as paredes altas de uma masmorra em que nos encerrámos.

Não ler é não sonhar, não filosofar é não ter direito ao espanto nem ao querer compreender o que nos eleva acima do humano. Não pensarmos ou não termos acesso ao passado colectivo é não termos o direito ao perpetuar de uma memória, que não só é tradição, como pode constituir advertência para o perigo e evitar a catástrofe. É de facto nunca pertencermos ao nosso tempo porque desconhecemos o tempo do que foi e o tempo do que virá. E não se entender isto é miserável porque se vive na espuma de uma ilusão que é a de um suposto progresso, solo no qual sequer criaremos raízes porque não passaremos nunca de meros bonecos ou silhuetas chinesas que representam o jogo dos poderosos. É disto que os poderosos vivem e se alimentam: da ignorância e da facilidade com que nos tornamos manipuláveis quando desconhecemos os fios com que se tece o engodo.

A proposta brasileira para se retirarem as disciplinas da sociologia, da filosofia, etc., é bem mais descarada do que as absurdas propostas feitas durante o governo Passos Coelho para se extinguirem a História e a Filosofia. Por ser muito mais óbvia a intenção, mais desumana e mais rasteira. Mais insultuosa, também, partindo de um pressuposto que é o de que ninguém vai reparar nisso. Enganam-se. Felizmente o Brasil já conheceu o “gostinho” pela educação e valoriza agora o que conquistou, existindo uma classe de intelectuais de esquerda cuja alta responsabilidade não deixará que isso aconteça. Porque o humano, a memória, o testemunho são irredutíveis. A catástrofe nasceu sempre do esquecimento e da dormência. Do medo, também. Não deixemos que eles vençam, mais uma vez, os que não gostam dos que pensam.

Leia-se, ainda a propósito deste tema, o belíssimo ensaio de António Cabrita.

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