Em nome de quê?

Talvez muitos não tenham memória do que aconteceu nos anos 30/40, na Europa. Muitos de nós não éramos nascidos, mas a história foi contada e recontada, filmada, escrita, descrita, sob todas as formas possíveis.

Perseguição aos Judeus, no gueto

Perseguição aos Judeus, no gueto

Não se trata agora apenas da devastação do nazismo, essa “entidade” que se alojou e cresceu insidiosamente ao longo da primeira metade do século XX, alimentada pelo medo e pela ignorância do povo (ou dos povos), mas também desse perigo que é o fanatismo religioso que, quando  associado ao estado, legitima as maiores atrocidades (veja-se o caso do EI, actualmente).

O espectro do “invasor” é algo que povoa, de forma difusa e distorcida, as mentes e a imaginação. Não se sabe bem que invasor é este, se o alemão ou o russo, o chinês ou, ainda, o islâmico. É uma imagem do inconsciente colectivo que habita as mais profundas zonas da consciência e que nos mantém sempre num estado que pode situar-se entre o vago medo e um torpor capaz de reavivar a violência colectiva, quando convocada pela manipulação dos meios de informação. Sobretudo quando se olha para as situações e não se mantém a distância.

As imagens sucessivas e caóticas de multidões incontroláveis de migrantes que chegam diariamente, aos milhares, esfomeados e sem dinheiro (já o gastaram todo, para trás) passaram a fazer parte do nosso quotidiano. Já não são os migrantes ou os refugiados, mas passaram a ser designados por “infiltrados” ou “invasores”. Em pouco mais de um mês da chegada maciça de estrangeiros, oriundos da Síria, Afeganistão, Líbia, Eritreia, etc., a percepção das massas passou da indiferença à paixão (subentendendo a comoção e o ódio, também). Reactivaram-se, assim, os grupos de neo-nazis, que assumiram a sua função de “guardiães” da nação, expulsando e maltratando os estrangeiros, os “invasores”. Não será preciso dizer que a ignorância ateia o preconceito e o sentimento de xenofobia. Não gostamos do que não conhecemos, não toleramos o que não compreendemos.

É desta onda de insanidade que precisamos de afastar-nos, para podermos preservar a lucidez. Ao vermos os vídeos que proliferam sem explicação nem contexto, não devemos tomá-los de forma acrítica e pensar antes que são aproveitados pelas organizações de extrema-direita, para fazerem o trabalhinho sujo. Ainda ontem, a Cruz Vermelha explicava o modo como foi descontextualizado o protesto dos migrantes numa fronteira da Grécia. E reafirmou a gratidão com que os migrantes os recebem, naturalmente. Desde a mais disparatada razão de não aceitar nada que venha com o símbolo da cruz (que justificaria, numa lógica distorcida, o atavismo da rejeição do símbolo cristão) até às revoltas contra a polícia, tudo serve o propósito.

Ajudaria muito pensar que aquelas pessoas são as que perderam tudo, deixaram para trás as suas casas e as suas vidas e se lançaram numa aventura para sobreviverem. Quase morreram, muitas delas, para chegarem às costas da Grécia e da Turquia. Trazem crianças pequenas, encontram-se no limiar da exaustão. São estes seres humanos que vão invadir a Europa?

Retornados de Angola

Retornados de Angola

Quando nós largámos Africa, nos últimos voos que vieram, quando rebentou a guerra de Angola, também vínhamos invadir Portugal? E os timorenses? Quando foi das deserções dos portugueses, a salto, ou dos fluxos de emigração para França e outros destinos, também fomos invadir a Europa? E que seria de nós, se não tivéssemos sido acolhidos? Porque há tão má memória disso? É preciso referir, ainda, que os custos da entrada dos refugiados não saem dos bolsos dos contribuintes portugueses, como tanta gente imagina, mas sim da própria União Europeia, que definiu quotas e subsídios a atribuir aos que chegam, com um estatuto bem definido. Se quiserem encontrar causas para o desfalque dos contribuintes e para o estado de miséria, terão de procurar nos erros dos sucessivos governos e nas circunstâncias da actual crise europeia.

Sim, haverá infiltrados, uma percentagem que ainda estará por definir. Mas o histerismo – muito bem aproveitado pela extrema-direita europeia – é desnecessário. Cabe-nos a serenidade de deixar as nossas instituições e a segurança nacional e internacional funcionar, colaborando com essa necessidade. Mas também nos cabe a lucidez como arte de vida, que nos permita uma distanciação crítica e que não nos tolha a capacidade de acolher quem precisa, de nos organizarmos em favor dos que chegam. E, sobretudo, a capacidade de não olhar para o lado e rejeitar a responsabilidade que temos, pois fomos cúmplices nesta diabólica estratégia de destruição de países como a Síria e o Iraque. Imediatamente aderimos aos ataques e às invasões desses países. Passámos um cheque em branco aos nossos governos, que actuaram de forma totalmente irresponsável. Nessa medida, somos culpados, também nós, mesmo os que não votaram. Esses não têm qualquer legitimidade para abrir a boca e falar dos sem-abrigo e dos refugiados.

Aposto que muitos se encontram nas fileiras dos que só desconversam. Só sabem de si e do seu umbigo. Foi sempre assim e continuará a ser. Mesmo os intelectuais, que se esgatanham em mesquinhas querelas em nome da literatura e da poesia, deviam olhar mais para o que se está a passar e posicionar-se contra a barbárie. Era bom que eles soubessem algo mais sobre o papel do intelectual: o da responsabilidade ou da lucidez, em alturas conturbadas. Os exemplos são infinitos. Os que deram a cara em nome dos valores humanos, imagine-se, eram intelectuais, normalmente escritores, pensadores. Mas tinham a exacta medida da sua importância, o que fazia toda a diferença.

Aproveitem para ver “O Ovo da Serpente”, de Ingmar Bergman.

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