Para termos a certeza de que estamos num deserto informativo, basta-nos abrir a TV e o noticiário, em qualquer dos canais portugueses. Resta-nos a fuga para cadeias internacionais, onde uma certa seriedade nos está garantida e que não seja refém da silly season, com noticiários a dar destaque às temperaturas do Verão e às minudências do eterno show futebolístico.
Um baque assalta-nos perante o êxodo dos migrantes, aquilo que me parece ser o mais grave. É a notícia que é transversal a todos os canais sérios, aos jornais e outros meios de informação. As filas de migrantes que entram agora pela Macedónia e que procuram desesperadamente alcançar a Europa e fugir a um destino maldito e a um quotidiano marcado pela guerra e pela perseguição, são pornográficas. Em si. E não precisam de explicação nem de legendas de nenhuma espécie para compreendermos o que está em causa. As consequências, como se sabe, são devastadoras. Aquilo que, há um mês atrás, em Calais, nos invadia os écrans, é uma brincadeira, dizem-nos os jornalistas, agora que uma crise humanitária sem precedentes na Europa se avizinha. Nem mesmo as tragédias do Mediterrâneo e a chegada de milhares de refugiados a Lampedusa (Itália) e à ilha de Kos (na Grécia) têm comparação com estas filas de seres humanos que calcorreiam as estradas sob o calor tórrido, sem água nem alimentação em condições suficientes.
A indiferença europeia (sobre a qual tenho as maiores dúvidas, pois parece-me mais uma indiferença dos políticos e das instituições) cede lentamente a uma reacção que é diversificada, pois pode ir da empatia a um ódio irracional. Cito como exemplo a forma como os neonazis se organizam na Alemanha, para impedir o acesso dos migrantes ao seu país. Isto reflecte o ódio nascente de uma camada da população que pode tornar-se contagiante e, assim, ameaçar profundamente a estabilidade social e política dos países europeus. Em breve, as fronteiras serão palco de confrontos por causa da passagem dos migrantes, vindo a opor países vizinhos que se vêem obrigados a aceitar o que os outros não querem para si. As políticas da Europa mudarão mais rapidamente do que pensamos, por decisão e desespero. A Inglaterra endureceu ontem as leis contra os trabalhadores ilegais, antecipando-se. A Hungria parece já estar a terminar o muro que tinha projectado (e que seria terminado no final do ano) para impedir a chegada dos migrantes. Estes milhares que vão a caminho da Hungria, para entrarem na Europa, esbarrarão nesse muro e o futuro, a breve prazo, será imprevisível.
A Europa, esse animal orgulhoso da sua organização, vê-se “atacada” por várias frentes. Não lhe bastava a crise económica profunda em que mergulhou, como é agora palco (e também ela foi profundamente responsável) das consequências das guerras em que foi cúmplice. Não é por acaso que é no seu coração que ocorrem atentados como o do TGV, em que, só por sorte, foi evitado um massacre. O facto pôs à vista as células do EI que vivem ocultas em Espanha, mas não sejamos ingénuos, pensando que aquela seria a única. Um artigo do Guardian dava conta, um destes dias, dos milhares de jihadistas que vivem em solo espanhol, aguardando cautelosamente a oportunidade para o próximo ataque. Enquanto isso, em França, onde se encontra a maior franja de população muçulmana, foi destruída ainda hoje uma mesquita, como uma reacção ao mal-estar relativamente ao Islão. A islamofobia cresce como um incêndio, como aumentará também, em reacção aos ataques aos muçulmanos, o anti-semitismo. Em breve, a Marine le Pen conhecerá o seu triunfo, que lhe chegará de “mão beijada” e sem grande esforço, em nome de uma defesa do republicanismo e de uma limpeza de emigrantes. É uma questão de tempo, se nada for feito para inverter esta ordem dos acontecimentos. Pois esse será o primeiro passo para uma Europa que já não será reconhecível nos seus princípios.
Poesia, vim buscar-te
Excelente artigo, ao qual se pode acrescentar a leitura ( a quem ainda não leu) de “1984” de George Orwell.
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Maria João Cantinho
Obrigada, Poesia! Tristemente real, tudo isto, que acontece diante dos nossos olhos.
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olga fonseca
Nua e crua realidade, que expões como só tu! E sempre atempadamente!!!!
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Maria João Cantinho
Obrigada, querida Olga! Beijinhos.
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Thiago Dantas
A Europa hoje é novamente o Império Romano do Ocidente. No fim da era Romana, a Europa, como agora, construía muros e fortificações contra as “invasões” do leste, chamadas Invasões Bárbaras, nas fronteiras. Da mesma maneira, quase como uma cópia do passado, procede cotidianamente.
Como historiador pergunto-me se não se planta nessas novas “invasões” vindas do Sul, a semente do esfacelamento do sonho de uma Europa unida. Nos idos de 361 depois de Cristo, as invasões destruíram o Império. E hoje? A que fim chegará? As ondas de gente, como as ondas do mar, não podem ser contidas por muros…
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Maria João Cantinho
Muito interessante, a sua observação. Eu acho que esse esfacelamento chegará necessariamente, como a sucessão natural e a “necessidade” dos estados para proteger as fronteiras. Por isso, urge uma resposta das organizações internacionais, para evitar consequências dramáticas.
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