João Barrento, O Género Intranquilo – anatomia do ensaio e do fragmento, editora Assírio & Alvim.
O ensaio faz-se a bordo dos dias. E a bordo dos livros, na leitura acidental, mais do que na dirigida. É sempre o mais tangencial que me leva ao centro, núcleo duro, pérola de ostra, nó de rizoma, ponto e ponte de fuga.
Barrento, O Género Intranquilo, p. 17.
Mais uma vez, João Barrento surpreende-nos com este novo livro, convocando-nos para a reflexão acerca da natureza do ensaio e do fragmento. A expressão “anatomia”, que usa no título, remete-nos para a minuciosa análise do mesmo. Mas se nos era permitido esperar um olhar sistemático sobre o ensaio e sobre o fragmento – da mesma forma que a anatomia do corpo nos reenvia para uma visão sistemática e organizada do mesmo – desengane-se o mais incauto. A ironia é claramente visível, seguindo o pensamento de Barrento as leituras e interpretações nada sistemáticas de autores como Montaigne ou Walter Benjamin (um autor que lhe é tão caro ao pensamento), entre tantos outros.
Precisamente para fugir a essa visão sistemática e restritiva do ensaio, Barrento optou por não iniciar a sua obra como havia pensado inicialmente, com um breve historial da mesma. Porém, essa origem do género está constantemente presente, ainda que não tematizada exaustivamente. É já identificável nos gregos Heraclito e Parménides – que nos legaram o seu pensamento sob forma aforística e fragmentária, tão cientes da precariedade do sistema e da totalidade do pensamento. Como nos diz o próprio autor, nas páginas 35 e 36, foram eles “os primeiros a ensaiar uma leitura do mundo através do balbucio. A profundidade ontológica é, neles, inversamente proporcional à quantidade de palavras que deixaram”. Afirmação esta que nos deixa, desde logo, uma entrada para o outro tema: o fragmento. Que ligação existe, assim, entre o ensaio e o fragmento? Será que se pode falar, aqui, de totalidade ou de sistema, à maneira do tratado medieval, como o referia Walter Benjamin, no seu “Prefácio” à obra Origem do Drama Trágico Alemão? Que questões são as que dizem respeito à natureza do ensaio e do fragmento?
Reconhecendo as forças indomesticáveis da linguagem, com as quais lida todo aquele que escreve, e consciente do poder devastador da infinitude da linguagem, João Barrento consagra este livro ao que pretende como uma análise fenomenológica do ensaio, numa interpretação paciente e lenta da escrita que cabe ao ensaísta. Logo no início, no primeiro capítulo do livro, consagrado ao ensaio e ao fragmento, em “Geografias do Acaso: Ensaio Geral do Ensaio”, a enunciação do autor sobre o ensaio não é isenta de paradoxo: “Assim, cada ensaio é um texto singular, a que nunca se conseguirá chegar com uma sistemática dos géneros”.
O género – se é possível, aqui, falar de um género, tomando em linha de conta as flutuações e contaminações entre a literatura e a filosofia – “tem o terror do aporético, o ensaio vive paredes meias com a aporia. Joga-se sempre entre sinceridade e ironia, ou entre reflexão e ficção. É um romance sem nomes próprios (Barthes), uma aventura do sentido. Desafia as leis da gravidade: da seriedade e do peso dos géneros maiores. Faz-se, desfaz-se, refaz-se numa zona-limite de risco e de ameaça.” (p. 27). Esta natureza do ensaio entrecruza todos os géneros, desde o romance ao próprio poema , procurando a demarcação do seu próprio território. E, por essa mesma razão, ele configura-se como “o menos imaculado dos géneros” (p. 24). Contaminação, também, com a própria imagem, a partir da qual, muitas vezes, ele surge inesperadamente, como um movimento irradiante. Nasce da imagem; e pensamos claramente em Benjamin e na sua obra “Imagens de Pensamento”, traduzida por João Barrento; e o pensamento progride a partir dessa mesma imagem, em novas conexões, de natureza fulgurante e dialéctica.
A visão tranquila do ensaio, como algo que resulta da acumulação de informação e da sua expressão puramente comunicativa, revela-se profundamente desajustada, actualmente. Os novos paradigmas emergentes do ensaio chegam-nos de França, lembrando-o João Barrento na entrevista que deu à “Revista Ler”, no recém-saído número de Dezembro. São eles Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, Didi-Huberman ou Bernard Stiegler, que passaram recentemente por Lisboa. Mas também Giorgio Agamben, de Itália, cuja escrita é, na óptica de Barrento, “uma súmula da fenomenologia e do modus operandi do ensaio”. A marca pessoal da escrita e um olhar subjectivo sobre a realidade são igualmente apanágio do novo ensaísmo. Veja-se Slavoj Zizec, por exemplo, às avessas de um academismo convencional.
Daí que a intranquilidade do ensaísmo seja, com efeito, um dos seus elementos marcantes e mais criativos. A sua intranquilidade advém-lhe, precisamente, do facto de ser o menos imaculado dos géneros, devido à sua não-neutralidade e androginia . Já Roland Barthes, no seu curso sobre “O Neutro” (no Collège de France, em 1977-78) estabelecia essa distinção “entre o neutro inactivo e vazio da doxa, e o neutro activo da escrita” (JB, p. 25), como o princípio criativo e que busca na aporia a sua matéria reflexiva. A disponibilidade do ensaio, como receptáculo aberto (à maneira de um corpo invaginado) transforma-o numa matriz instável, pois a lei que lhe é intrínseca é a “lei de uma contra-lei de género sem género” e que faz dele o “lugar de todas as interrogações e de todas as transgressões e passagens”. O ensaio, corpo invaginado, é “único, recusa qualquer exemplaridade”. Isto é, recusa, pela sua singularidade, transformar-se na norma, colocando em suspensão e, mesmo, “aterrorizando” toda a teoria (masculina) dos géneros. E essa lei do corpo do ensaio, como afirma Barrento e nos revela a própria escrita, na sua natureza, segue uma outra lei, que é a lei do desejo, como a tensão que anima o desenvolvimento orgânico do ensaio. Aliás, o autor fala mesmo de uma gestação , como o movimento interno que percorre a escrita do ensaio. A imagem ou a ideia configuram-se como a semente, que se desdobra e cresce nesse corpo fértil, que é o texto ensaístico.
A aporia, a dificuldade, o problema, a névoa, tudo isso são, também, os objectos que configuram as “cintilações imprecisas” do ensaio, desestabilizando a escrita a que o cânone nos habituou. Barrento mergulha, também, no instável texto de Rilke, de Hölderlin, de Novalis e de tantos outros, para nos mostrar como conforma o desejo o grande motor da escrita poética, o percurso do “desejo a querer ser forma, a ganhar corpo”, a tensão entre o dito e o não-dito (p. 20), mas também o “trabalho do ensaio” como “o do cerco armado à verdade inexpugnável do seu objecto” (p. 33). João Barrento lembra aqui a metáfora de Novalis sobre os discípulos de Saïs, também ela tão cara a Walter Benjamin. Ao procurar desesperadamente ver a verdade, o que o discípulo vê (e a ela sucumbe) é a “imagem da sua própria insignificância, das míseras certezas que já se levam na manga, e que não resistem ao primeiro confronto com o real (o olhar da deusa)”. O ensaísta procura acercar-se do seu objecto, compreendê-lo, mas sabe que não pode abarcá-lo e que essa verdade, de que quer acercar-se, não é tangível e escapa-lhe continuamente. Por isso, o seu método operatório consiste no desvio, algo que admiravelmente Benjamin explica no “Prefácio” à obra A Origem do Drama Trágico Alemão. João Barrento sabe, como Benjamin o dizia nessa mesma obra e, também na sua correspondência, que “A verdade é a morte da intenção(…)Toda a obra acabada é a máscara mortuária da sua intenção.”. É do sistema procurar essa verdade aprisioná-la, assassinando o princípio criativo da reflexão, a sua instabilidade, à maneira de uma respiração. Por isso, o autor alude a essa natureza do ensaio, a mais genuína que pode encontrar-se, aquela que suscita o “espanto original” (p. 34): “Em cada ensaio genuíno há bolsas de silêncio, suspensões da significação, bolhas em que o leitor pode respirar, interrogar, espantar-se, adivinhar”. (p. 35).
E também por essa razão, se o ensaio é avesso ao sistema, pela intranquilidade que o perpassa, a escrita do ensaio abre-se a outras formas, como o fragmento, o aforismo, tão caras ao Primeiro Romantismo, a Nietszche, Benjamin. Se a dissertação e o tratado impedem o pensamento de respirar livremente, já o ensaio e o fragmento o permitem, pela sua natureza intermitente. O mito da totalidade, tal como o da verdade, revelam-se como tal, como objectos nostálgicos e derradeiramente perdidos, perante o olhar do ensaísta. A moderna exigência do fragmentário, que atingiu toda a poesia e literatura modernas, recupera lucidamente uma forma de escrita que encontramos no Primeiro Romantismo (particularmente em Schlegel e Novalis). Autores com Benjamin, Agamben, Maria Gabriela Llansol, ao reclamarem o fragmento como forma de pensar e escrever, não fazem outra coisa senão dar corpo a uma exigência que decorre do grande paradoxo da busca do ensaio: procurar uma totalidade singular (no caso de Llansol) ou as constelações, em torno das quais se agrupam as ideias (Benjamin), renunciando à verdade como totalidade.
No segundo e último capítulo, sob o título de “Afinidades Electivas”, João Barrento acerca-se de alguns autores com os quais sente um elo mais familiar, como sejam o já citado Benjamin e Giorgio Agamben, mas também Pascal Quignard e os ensaístas portugueses Eduardo Lourenço e Eduardo Prado Coelho. Usando a metáfora goethiana (e que deu título a um dos seus romances), Barrento reconhece nestes autores as suas constelações mais próximas, entre a escrita deambulatória e errante e o fragmento. Entre o hibridismo de Eduardo Prado Coelho, que tão admiravelmente cruzava a escrita entre o ensaísmo e o jornalismo, e a flanerie benjaminiana, pontuada pelas imagens de pensamento que norteavam os seus textos, como focos luminosos e irradiantes, Barrento move-se nesta intermitência da escrita, fazendo ressaltar a natureza intranquila do ensaio e comparando-a a uma fuga musical, em que a intensificação da ideia e a sua progressão é reconhecida na “sequência de temas e variações” (p. 140).
A expansão e a contracção das imagens de pensamento, onde ocorre o desdobramento do pensar, é a lei que, do seu interior, vai auto-impondo limites, nessa inquietação permanente. Inquietação que se move entre o paradoxo e a tautologia (como o afirma João Barrento, na p. 141), inquietação também que provém da fragmentação do dito, abrindo (e deixando em aberto) a possibilidade infinita do não-dito. Mais do que a ambiguidade, é o paradoxo, a tensão entre esses pólos, que dita a configuração do ensaio.
O texto com que Barrento fecha o livro, de Pascal Quignard, “Como se lê um fragmento” mostra bem que não só é intranquilo o olhar do que escreve, mas também daquele que lê o fragmento. Simultaneamente deparamo-nos com a evidência da imagem e da sua fulgurância, que se oferecem ao nosso olhar, mas também com a lei que nele (fragmento) se oculta. “Ler um fragmento”, diz Barrento, “é mergulhar na noite”. Porém, “os fragmentos que vou lendo fecham-se (abrem-se?) sobre mim como a abóbada de uma noite salpicada de luzes”. O eterno paradoxo: o fragmento dá a ver algo, brilha instantaneamente, que se oculta no seu mistério. Claridade e enigma oferecem-se, na sua duplicidade, ao nosso olhar.
A natureza do fragmento é a da imagem dialéctica e fulgurante, de que nos fala Walter Benjamin. O fragmento contém em si a ideia e o inesperado fulgor da sua evidência é a própria fissura que desinstala o nosso olhar, para que possamos entrever o que não é visível: a Ideia, o Tempo. Este Tempo, diz Barrento, como o dizia já Walter Benjamin, na sua concepção de imagem dialéctica, é o tempo tomado como puro instante, como pura presença, o que escapa à extensão do espaço e à própria continuidade do tempo. A esfera do fragmento é, assim, a do Lugar (e não do espaço amplo, contínuo e aberto), do Tempo – e não o tempo que é medido e contado.
Mónada ou imagem fulgurante, encerrando em si a lei do seu desenvolvimento, ele é portador da nostalgia da totalidade, de onde “saltou” (p. 136). E se a sua ordem é a da epifania e do Nome, então a espessura da nossa linguagem não a alcança, mas, paradoxalmente, não deixa de ansiar esse alcance, precisamente pela incompletude que nos cabe em sorte. O risco que corre o seu leitor, ao almejar a sua compreensão e o seu conhecimento, é o do silêncio, do balbucio da linguagem. Toda a leitura, di-lo João Barrento na página 150 desse texto belíssimo, “tende para o silêncio”, esse resto que fica, “quando todo o ruído do dito, já-dito e redito se cala”. Mas aquele que lê talvez se aproxime do “paraíso perdido do Nome”, de que nos falam as teorias metafísicas da linguagem. A leitura e a interpretação do fragmento permite levar a cabo – numa tensão dialéctica que lhe é própria – uma restauração do valor simbólico do Nome e da linguagem, da Ideia.
O livro de João Barrento é uma obra preciosa, nos dias que correm, num tempo dominado pelo medo do silêncio, percorrido pelo ruído frenético e pela logorreia da linguagem. Aliás, também aqui essa alusão é feita nas páginas 36 e 37, quando ele diz: “A aurea mediocritas burguesa dominante alimenta-se, porém, de outras águas: do ruído estridente, constante e sem finalidade da (des)conversa sem espanto(…) Falar, e falar por falar, é sempre melhor do que ficar calado.(…) Enquanto se fala, não se pensa, nem se deixa pensar. À crise da linguagem que por volta de 1900 gerou um cepticismo produtivo correspondem, nesta viragem de milénio, outras, de sinal contrário: a logorreia que ameaça sufocar todas as formas de sensibilidade, e a tirania da imagem que atrofia as faculdades do pensar.” Fica-nos aqui o aviso sério: repensar a natureza superficial das imagens e da logorreia que nos sufocam o pensamento e a respiração, para podermos ouvir e escutar o que de precioso e inaugural, ainda, pode trazer-nos a linguagem e o pensamento. Rever, ainda, as convenções, rasgar a continuidade das ilusões para reencontrar o fulgor de um saber que se oculta na inquietude do pensamento. A nossa busca, ela própria, não pode ser senão intranquila e povoada de temores.
Maria João Cantinho (publicada em PNETliteratura)