Um vírus perigoso

Não é inédito o que vou dizer, a questão está mais que diagnosticada, mas gostaria de analisar o modo como este vírus contamina tudo, no nosso país. Falo da chico-espertice, o desporto nacional, o recurso a que mais recorremos, neste país. Há muito que sabemos todos disso, que o mal se instalou definitivamente nas instituições, nas empresas, nas universidades, escolas, etc.. Porém, o que mais me preocupa é a sua persistência (e começava eu a pensar e a ter uma certa esperança de que este vício nacional começasse a desaparecer), apesar das dificuldades que enfrentamos e da necessidade de criar quadros de mérito que possam, por sua vez, gerar condições transformadoras da sociedade.

Não é hábito meu fulanizar questões nem parece que a fulanização acrescente algo à crítica. Particularizar casos é estabelecer um mero exercício dedutivo e estéril. Mas gostaria de mostrar como o chico-espertismo se opõe ao imperativo categórico kantiano, o único que poderia contribuir para uma revolução de mentalidades, deixando implícita a ideia de que o ensino da ética, no plano da cidadania, deveria ser obrigatório desde a mais tenra idade. Como um possível modo de extirpar esse vírus letal do chico-espertismo.

Não vale a pena definir aqui o género em questão, pois todos o conhecemos e podemos, ainda, ver os próprios chico-espertos a criticá-lo com a maior das convicções, em estado de pura negação. Quem vinga socialmente é o chico-esperto. Esta é a ideia que se tornou “normal” na nossa sociedade. A política portuguesa e os meandros do poder tornam óbvia essa condição, a dos que passam através dos pingos da chuva e se transformam em poderosos da noite para o dia, dos que arranjam empregos sem habilitações nem currículos que se vejam, dos que escapam às malhas da lei de forma surpreendente, etc.. Nos jovens e crianças portugueses, a imagem de que só sobrevive quem é chico-esperto passou a ser a norma. Daí que a ideia de mérito e trabalho se encontre em permanente desqualificação e isso é notório. É o valor de exemplo que se instaurou numa imagem colectiva que teima em persistir na sociedade e quem não é chico-esperto é apelidado de “parvo” e “ingénuo”, tendo-se transformado a honestidade uma categoria que perdeu o sentido. Ineficaz e inoperatória, ela esvaziou-se, aos olhos de gerações de jovens que perdem a esperança no futuro. O impacto desta esquizofrenia na sociedade (de valores, certamente) é devastador, a curto, médio e longo prazo. Digo esquizofrenia porque não há prevaricador que não bata no peito em nome dos bons costumes. Se estivermos atentos ao próprio sistema de ensino, verificamos que as técnicas engenhosas de copiar nunca estiveram tão apuradas. O que há umas décadas era realmente mal-visto, hoje passou a ser normal e é necessário um estado de reforçado policiamento (absurdo e insustentável, pidesco) para evitar as situações. Chegou-se ao ponto de nem se permitir nos exames a entrada dos rótulos das garrafas de água, para evitar as “cábulas”. Os alunos são revistados à entrada das salas de exame, como se fossem prisioneiros e outras medidas que, se não fossem tristemente evocatórias dos estados de policiamento, seriam hilariantes.

Nos dias em que o desespero pela situação é mais gritante, nesse confronto diário e tentativa para explicar que o imperativo ético é algo que deve estar inscrito na construção da cidadania, torno-me céptica a um nível tóxico, pois não consigo imaginar que tipo de sociedade pode constituir-se nesta falácia colectiva que tudo contamina e destrói. A responsabilidade, friso, não é dos outros nem a culpa é dos jovens, mas nossa, enquanto cidadãos. Porque eles são o resultado de uma conjuntura que foi por nós criada e foram programados para isto. Não há volta a dar.

 

One thought on “Um vírus perigoso

  1. Ana Maria Coelho

    Muito Bom, Maria João. É a pior das epidemias porque enquanto educadores só conseguimos transmitir os valores que temos, e assim lançamos para o mundo cidadãos que têm que conviver com chico-espertismo em tudo com que se vão deparar na sua vida, isso é muito difícil porque é um mundo injusto e desprovido de tudo o que é humano e por vezes é frustrante. Resta-nos a convicção e a alegria, que demos o nosso melhor contributo para que a Sociedade não se desmorone de vez… Era muito Bom voltarmos a ter a Filosofia como disciplina obrigatória para assim os “porquês” e as teorias de Kant voltarem a ser descobertas e com isso criar novos debates e porquês, revolucionando assim mentalidades. Talvez assim se evitasse o crescimento da geração do chico-
    espertismo…

    Ana Maria Coelho

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