A recusa da ideia de um contínuo da história postulada no ensaio sobre Fuchs tem de ter consequências epistemológicas; uma das mais importantes dessas consequências parece-me ser a determinação das fronteiras traçadas para o conceito do progresso na história.
Walter Benjamin, “carta de Benjamin a Horkheimer, datada de 24 de Janeiro de 1939”, in GB, VI, p. 198.
No regresso de Ibiza a Paris, em Outubro de 1933, Benjamin escreveu a Gretel Adorno, no início de Novembro, dando-lhe conta de um encontro marcante: “Encontrei-me com Fuchs, um homem de uma admirável força vital” (BENJAMIN W. , Gesammelte Briefe, 1998, p. 309). A partir dessa data, dado o interesse de Horkheimer, que lhe encomendou um artigo para a Revista de Investigação Social, Benjamin inicia a sua pesquisa sobre Eduard Fuchs. Provavelmente Benjamin ter-se-á encontrado com Fuchs mais de uma vez, entre esse mês de Outubro de 1933 e o mês de Maio de 1934, existindo, ainda, um registo de um encontro na Primavera de 1934 e a intenção de Benjamin redigir um ensaio sobre Fuchs deve ter-se tornado mais definida nessa altura, na medida em que, nesse Verão, Benjamin já mergulhara na leitura de Fuchs.
O que se sabe é que esse ensaio foi interrompido e adiado, pedindo alargamento do prazo para a redacção do artigo. A correspondência durante esse período, com Horkheimer, Scholem, Adorno e Gretel, dá-nos conta de todo o processo da redacção, das hesitações e adiamentos, reflectindo também a relação complexa e controversa de Benjamin com o Instituto de Investigação Social. A situação desesperada por que passa Benjamin nessa época deve ter constituído, também, um dos factores de desmotivação do autor. É numa carta dirigida a Horkheimer, datada de 28 de Fevereiro de 1937 (GB V, p. 463) que Benjamin diz ter enviado nessa data o trabalho sobre Fuchs e, após as correcções de Horkheimer, o artigo é finalmente publicado.
Na mesma época já preparava aquela que viria a ser a sua obra publicada postumamente, Das Passagenwerk, em que se dedicava à reflexão sobre o paradigma epistemológico da História, mas também já tinha presente o que viria a ser o seu último texto, Sobre o conceito de história. Refiro-me aqui a estas obras de Walter Benjamin pela pertinência do tema, que o ocupava sobremaneira: a questão da história e a sua crítica ao conceito do Progresso. Não é por acaso que existem partes do ensaio sobre Fuchs que serão posteriormente integradas nas teses sobre a história, como o próprio Benjamin afirma, numa carta que dirige a Horkheimer, datada de 22 de Fevereiro de 1940:
Acabo de redigir algumas teses sobre o conceito da História. Estas teses ligam-se, por um lado, aos pontos de vista esboçados no capítulo I do «Fuchs», e servirão, por outro lado, de armadura teórica para o segundo ensaio sobre Baudelaire (BENJAMIN W. , Gesammelte Briefe, 1999, p. 400).
Quando Walter Benjamin decide redigir este ensaio, o seu objectivo é claro e articula-se com as preocupações que têm vindo a ocupar o seu pensamento durante a década de 3º e sobretudo a partir de 1936. A figura de Fuchs e o seu trabalho enquadram-se justamente naquilo que constitui, aos olhos de Walter Benjamin, o novo paradigma da compreensão e da leitura da história, tal como ele a defende, não só nas suas teses, em Sobre o Conceito de História, como também na sua obra O Livro das Passagens. Na verdade, o ensaio “Eduard Fuchs, colecionador e historiador” é o pontapé de saída para a questão da dialéctica histórica, na medida em que Benjamin reconhecia como tarefa do materialista histórico o “escovar a contrapelo” a ideia convencional da história da cultura:
Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. E, do mesmo modo que ele não pode libertar-se da barbárie, assim também o não pode o processo histórico em que ele transitou de um para outro. Por isso o materialista histórico se afasta quanto pode desse processo de transmissão da tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo. (Benjamin, O Anjo da História, 2010, pp. 12, 13).
Eduard Fuchs protagoniza, para Benjamin, o historiador da cultura que pensa a história ao arrepio da história continuista, criticando vários aspectos que constituíam a história de arte do ponto de vista classicista. Se o historicista “propõe a imagem eterna do passado; o materialista histórico fá-lo acompanhar de uma experiência única. A substituição do momento épico pelo construtivo revela ser a condição desta experiência” (BENJAMIN W. , Eduard Fuchs, Coleccionador e Historiador, 2010, p. 110). Assim, pensar a história da cultura desta forma, a partir do presente, “arrancando” o fenómeno histórico à sua sucessão e continuidade, é o que faz interromper o curso dos acontecimentos e permite dar valor àquilo que de outro modo se perderia. E essa experiência histórica permite que se libertem as “gigantescas forças que permanecem presas ao «Era uma vez» do historicismo” (Idem).
Excerto de uma conferência que irei dar em breve, na Universidade de Goiás (UFG)