Texto do Prémio Jacinto Prado Coelho, Aquilino – a escrita vital, de José Carlos Seabra Pereira
É uma honra para nós, que constituímos o Júri do Prémio Jacinto Prado Coelho, atribui-lo a uma figura tão meritória quanto o Professor, investigador e ensaísta José Carlos Seabra Pereira, em ex-aequo com Fernando Cabral Martins. A nossa tarefa, perante obras de dimensão ensaística tão rica, não foi fácil. Porém, a nossa escolha foi unânime, na fase final de deliberação e consequente decisão, pela inequívoca qualidade ensaística das duas obras.
Não me cabe a mim falar aqui da obra de Fernando Cabral Martins, mas sim de Aquilino – a escrita vital, de José Carlos Seabra Pereira, que desenvolveu aqui uma abordagem da obra e da vida desse que foi um grande escritor da nossa contemporaneidade. O Prémio que lhe é agora atribuído contempla, não apenas este livro em particular, mas pretende igualmente reconhecer a excelência do trabalho ensaístico do seu autor, sobretudo na área da literatura portuguesa finissecular, do neo-romantismo e do modernismo portugueses.
Aquilino foi uma figura extraordinária do seu tempo. Desassombrado e ousado, era um “homem de acção” e a sua biografia atesta-o. A dimensão política e libertária de Aquilino que atravessou a sua ficção foi bebida nos grandes filósofos da sua época, como Nietzsche e Bergson, Émile Durkheim, a cujas aulas assistiu em Paris, nos seus tempos de exílio político e que contribuíram para moldar o seu pensamento e escrita. Se, por um lado, a sua escrita condensa uma carga telúrica que lhe advém da ligação à terra e à região em que nasceu, agreste e inóspita; por outro, há um cosmopolitismo que lhe impregnou fortemente a sua personalidade indómita, de anarquista e republicano convicto. Como bem o salienta o José Carlos Seabra Pereira, a sua obra não foi aceite de forma pacífica, e lembre-se aqui o seu litígio com aquele que era um dos críticos mais aclamados, João Gaspar Simões, sobretudo pela sua criação Mónica (1939), que classifica como um “fraco romance”. Mais tarde, em 1960, há-de ser o próprio Gaspar Simões à sua candidatura ao Prémio Nobel da literatura, num gesto de reconciliação, mas também de reconhecimento pela sua obra.
Obedecendo ao rigor de uma fina construção ensaística, José Carlos Seabra Pereira persegue os traços essenciais e os núcleos rizomáticos da poética de Aquilino, da sua opulência e inovação do ponto de vista lexical. No primeiro capítulo da obra aborda “a poética vitalista em Aquilino”, mostrando o modo como o pensamento de Nietzsche e o seu conceito de “vontade potência” atravessam uma parte das suas narrativas, nomeadamente O Jardim das Tormentas (1913) e em Andam Faunos pelo Bosque (1926), onde o próprio Aquilino reivindica essa presença, ao dizer “escrevi com o meu sangue”, aludindo aqui a uma passagem de Assim Falava Zaratustra. Deste modo, José Carlos Seabra Pereira ressalta a dimensão da lucidez e de pertença ao seu tempo, profundamente entrosado na cultura do seu tempo. Face ao “lusitanismo saudosista do paradigma rústico-patriarcal”, Aquilino soube contrapor, não apenas o poder das pulsões eróticas, como refere o autor, mas também “um vitalismo marcado também pelo legado libertino e cosmopolita” (p. 31).
Todavia, se esse vitalismo se constitui como uma marca de água do ensaio de José Carlos Seabra Pereira, ele não esgota a ficção de Aquilino, figura multímoda da cultura portuguesa, que também usou a escrita como forma de resistência política e pela qual pagou o seu preço (com a prisão e estadias fora de Portugal). José Carlos Seabra Pereira leva a bom porto o difícil e com agilidade o exercício de cruzar a investigação da sua biografia, sem se deixar prender pelo fascínio do homem e cruzando com mestria o seu percurso com a análise rigorosa do texto aquiliano. É nesse ponto de equilíbrio que reside também a qualidade do seu ensaio, onde fez questão de eliminar o excesso de referências bibliográficas que, muitas vezes, dificultam a leitura do ensaio, optando por incorporá-las no corpo do próprio texto. Tal decisão não é alheia ao estilo do próprio autor, que é, ao mesmo tempo, uma imprescindível referência sobre Aquilino Ribeiro e um ensaio de fácil acesso, escrito numa linguagem irrepreensível e cativante.
Estamos hoje, mais precisados do que nunca, dessa estirpe de escritores e poetas que souberam responder ao apelo do seu tempo. Humanista e republicano, democrata convicto e que se opôs ao regime de Salazar, Aquilino protagonizou o exemplo de uma responsabilidade cívica, da forma que sempre conheceu: pelo exercício da escrita e de uma coerente acção política que sempre manteve, ao longo da sua vida. É também neste sentido que a obra de José Carlos Seabra Pereira é incontornável, pelo desejo de render justiça à voz de Aquilino Ribeiro.
Maria João Cantinho, texto lido na SPA, no dia 26/01/2016