Não sei se viram o breve documentário da SIC Notícias, dedicado às crianças de Atenas que são abandonadas nos hospitais. O fenómeno, já de si chocante, tem vindo a agravar-se e a aumentar. As mães vêm aos hospitais dar à luz uma criança e abandonam-na porque não sabem se a podem criar.
Imediatamente me lembrei de que assisti a este fenómeno quando tive o meu primeiro filho num hospital público (eu sou daquelas que acredito no SNS e jamais teria um filho num hospital particular). Ao meu lado, uma mulher visivelmente perturbada (toxicodependente em privação) preparava-se, ainda que eu não o compreendesse, para fugir pela calada da noite, abandonando uma criança que passava a noite a gemer (vim mais tarde a sabê-lo, era também por privação). Fê-lo, quando já todas dormíamos, pela alta noite. Era uma mulher gentil e amamentava o filho com carinho, nada fazia prever o que aconteceria. Havia ali amor, mas também havia a consciência da impossibilidade de criar o filho. O pai nunca apareceu. Estava só. O caso deu que falar, a maior parte das enfermeiras e pacientes recriminava-a, muitos diziam que era prostituta. A mim tanto se me dava, pois lembro-me dela gentil e dócil, a amamentar o filho com suavidade, com o desvelo de qualquer mãe. Se tivesse previsto, talvez tivesse tentado falar com ela, para lutar pelo apoio social a que tinha certamente direito. Ocorreu-me muitas vezes essa pergunta: porque não abortara? Talvez não tivesse dinheiro ou, simplesmente, talvez quisesse dar uma oportunidade de vida à criança.
Sempre achei que nestas situações em que a mulher se vê a braços com situações de desespero, a melhor solução é abortar. Eticamente, considero que deixar uma criança no mundo, sem nome nem pais, é das coisas mais traumáticas que se pode fazer a um ser humano. Dir-me-ão os objectores que serão amados por alguém, mais tarde. É uma questão de sorte. Há crianças que são devolvidas pelas famílias adoptivas. Uma criança não é um adereço nem pode ser um complemento de uma família, é um ser constituído por uma identidade que se funda nas suas experiências mais antigas, de quem o gerou, de quem o amou desde a mais tenra idade. Com uma presença cuja continuidade lhe assegura a confiança no mundo e que determina a sua relação com os outros, dependente da relação que tem com os que ama. Por isso é que, muitas vezes, mesmo maltratados e abusados, continuam a confiar, a amar, não conhecem outra forma de o fazer. Crescem revoltados, zangados, mas não podem não amar.
Tudo isto vem a propósito das crianças de Atenas que são abandonadas nos hospitais, que não têm nome e crescem em instituições, onde são certamente acarinhadas, mas pergunto-me se serão amadas, nesse sentido de incondicionalidade. Não digo que quem as crie não as ame, mas poderão ter atenção, criadas em espaços onde existem tantas outras? Pergunto-me também sobre a sua identidade parental, sobre o medo e o simultâneo desejo de virem a ser adoptadas (quando são muito pequenas, esse medo não existe, mas, à medida que o tempo vai passando, ele torna-se mais angustiante). Não são ensinadas a confiar, mas a temer e isso define-lhes, à partida, a relação que estabelecerão com os outros.
Não sendo psicóloga, pergunto se não será esta ausência de pertença e de identidade que tantas vezes os traz profundamente amargurados, ressentidos e revoltados. Mesmo quando inseridos em famílias que os acolhem amorosamente.
O fenómeno das crianças de Atenas é alarmante e lembra-nos o dos filhos da guerra, ainda que, por enquanto, os hospitais e os orfanatos continuem a cumprir a sua função. Lembra-me o ambiente ominoso dos romances de Dickens, numa época em que as crianças eram escravizadas e instrumentalizadas pelos gangs de criminosos (e são-no por toda a parte, mas a Europa ainda era um paraíso). Quem não leu a história de Oliver Twist ou de David Copperfield, das crianças abandonadas que viviam em orfanatos em que eram terrivelmente maltratadas?
O orfanato de Atenas, que também participava no documentário, dizia claramente que a situação económica era tão má que não sabia quanto tempo aguentaria. A questão transforma-se: “o que será daquelas crianças se as intituições sociais entrarem em colapso?”. E não me venham dizer que elas são “gregas” porque são (por decisão nossa) europeias e somos todos responsáveis. E amanhã serão as “portuguesas” e depois as “espanholas”. Até quando?