Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las.
Walter Benjamin, “O Anjo da História”, Tese IX.
Todos os dias se repete o mesmo. Esta imagem, ainda tirada neste mês de Março, dá-nos conta de novos afogamentos, sempre vitimizando o elo mais frágil, que são as crianças, como a da fotografia, acusando-nos com o seu olhar de incompreensão e profunda tristeza. Estas imagens, como outras que vemos, mostram-nos diariamente o êxodo dos refugiados e de migrantes, que faz com que a Europa mostre o que de pior guardava, de forma visceral: uma indiferença que relembra o ignominioso da história no século XX: o nacionalismo e a xenofobia, uma ignorância assassina, que mata, não só os que a sofrem, mas também a esperança que alimentava o ideal da UE.
Relembrem-se, para que sejamos testemunhas, todos os factos que se sucedem em catadupa, como uma catástrofe em permanência e que nada nem ninguém parecem travar. Dir-se-ia que a figura do Angelus Novus, o “anjo da história” que nos aparece nas Teses sobre a história, aquele que, de olhar impotente e “asas presas”, está entre nós é hoje uma imagem mais vívida do que nunca, assistindo aos escombros que se “amontoam até ao céu” (Tese IX) .
Nunca foram tantas as obras e os livros que relembram o extermínio judaico e os campos de concentração. Não só Hannah Arendt nos ensinou tudo sobre as formas como evolui o totalitarismo e a face do mal, nomeadamente naquele que foi o seu mais polémico livro, Eichmann em Jerusalém, onde Eichmann, em lugar de se revelar, no seu julgamento como o monstro impiedoso que todos julgavam ver, se revela como um burocrata ou um funcionário mediano, de pensamento medíocre e incapaz de reflectir sobre os seus actos. A maior ameaças às sociedades democráticas, ensina Arendt, é a confluência da capacidade destrutiva e a burocratização da vida publica, que se encontra expresso no termo “a banalidade do mal”.
Há hoje uma proliferação de obras sobre o tema do Holocausto. Desde autores como W. G. Sebald a Martin Amis, o tema tem sido trabalhado das mais diversas formas e pontos de vista, desde o histórico ao romance, sendo recorrente no cinema e na arte. Ao mesmo tempo, face aos novos acontecimentos e aos efeitos do terrorismo e das guerras no Médio-Oriente, há uma esquizofrenia colectiva e crescente, onde se reconhece o reaparecimento destas forças que se encontravam adormecidas. O medo colectivo, que se aloja nas fissuras da ignorância, faz estalar os princípios de humanidade e reacende a chama destrutiva do mal que julgáramos extinto. Esse mal que a história nos ensinara a temer e que as novas gerações parecem ter esquecido, pois não é por acaso que as hordas de extrema-direita sejam essencialmente constituídas por jovens.
Nesta fotografia, onde milhares de judeus aguardam a sua entrada em campos de concentração, após a Kristallnacht, identificamos a passividade das vítimas (um facto estranho mas em correlação directa com o horror e com a ausência de esperança). Mais tarde veríamos esses rostos catatónicos que se assemelhavam mais a cadáveres do que a homens, rostos nos quais a vida (e a sua luz íntima) parecia ter-se desvanecido.
Há fotografias que são malditas e se instalaram no mais recôndito da nossa memória colectiva, imagem do horror que é hoje substituída pelo fast-food cinematográfico de todas essas sagas apocalípticas. Imagens de morte ambulante, obscenas e insuportáveis, sem que seja necessário fazer make-up nem efeitos especiais. Representam essas figuras que espelham em si a condição da “vida nua” de que nos fala Giorgio Agamben, ao referir-se àqueles que se encontram excluídos da protecção jurídica das sociedades ditas democráticas.
E a memória dos mais jovens parece ter substituído as imagens do horror verdadeiro por outras onde é injectada a violência gratuita, grotesca, transformada em gozo moderno. Quando se vêem hoje as séries dos Walking Dead, quando promovemos essas imagens em espectáculo cinematográfico, estamos a contribuir para o esquecimento do que é o verdadeiro maldito, esse mal inominável que é presença e imanência na nossa história.
E o mal, sabemo-lo, é banal, insidioso, burocrático, e instalou-se definitivamente entre nós, sob a fria máscara da racionalidade, mais uma vez, nos corredores das instituições da democrática União Europeia, nos gabinetes dos seus líderes. Quando os chefes da UE resolvem fechar as fronteiras face às multidões de refugiados em desespero fazem-no em função de uma racionalidade de recursos, em nome de uma qualquer salvaguarda nacionalista. O mal é hoje este medo que gera a xenofobia e o profundo desprezo pelo Outro, de onde tudo pode vir, desde uma indiferença que conduz ao abandono (deixarmos multidões entregues a si próprias e em indefinida espera não é abandono?) até à brutalidade dos ataques de que têm vindo a ser alvo os refugiados. Fecham-nos em campos de refugiados, cercados de arame farpado, de onde não podem sair. Desde o fecho das fronteiras, em toda a rota dos Balcãs até aos campos de Calais, que agora começaram a ser desmantelados, o significado é o mesmo, o da exclusão e o do abandono, da pura indiferença. Teremos exércitos de esfomeados, doentes e desesperados, cuja inacessibilidade da hospitalidade se fez lei. Teremos também todas as condições criadas para que uma onda de revolta comece ali, como uma ameaça real, legitimada também pela indiferença dos nossos chefes.
Sabemos todos que isto tem um nome e um rosto. Que o digam as organizações de extrema-direita como Marine Le Pen, o PEGIDA, os acólitos de sinistras organizações que marcham ao som de “Heil Hitler”, pelas ruas de Leipzig. Que o digam também as organizações de nacionalistas que têm estado a emergir nos países nórdicos e que incendeiam zonas onde se acolhem refugiados. Que o digam (e dizem com veemência) os líderes políticos de países supostamente democráticos, como Viktor Orban, que recusa a presença de mais muçulmanos no seu país. E as sanções europeias não existem, para aqueles que claramente violam a tolerância democrática? Ou será preciso assistir à derrocada final para finalmente acordarmos no meio dos escombros e da catástrofe que deixámos que acontecesse? Este será o nome da Europa?