Balada de Czernowitz

Ter-lhe-á dito que não era legítimo
Escrever poesia nas costas dos mortos de Auschwitz.
E que fazer, se os olhos lhe doíam e a língua queimava
que fazer se o vidro lhe entrava tão dentro da pele
e nada parecia sobreviver senão o som do violino
compassando o ar vazio, o baque dos corpos
o som seco e metálico saindo do cano das armas
depois ele recuou e tentou desculpar-se,
mas a cinza de Sulamith já se transformara no seu olhar
o som saía gutural, atravessava o poema com a sua lâmina
e as palavras entravam na noite
cruzavam desertos, rasgavam as vísceras dos mortos
e eles, os mestres da morte, olhavam indiferentes
nem malévolos sabiam sê-lo, instrumentos apenas
de uma razão gelada, para a qual não há nome
o que escrevia poemas nas costas dos mortos
trazia no olhar reflexos de anjo, esse anjo de asas tolhidas
que fazer, se tudo escurecia no horizonte
senão dar nome aos mortos, trazê-los à memória
ao poeta não cabia senão a dor e o lamento
e, sem querer, o filósofo que decretou a impossibilidade
era irmão dessa razão sem nome, já que depois da morte
outra morte sobrevém, a do esquecimento
e um anjo sabe menos do que um filósofo
mas tudo sabe do humano e da linguagem
desse humano que vive para lá da morte
e, mesmo que as palavras não lhe subam à boca,
escreve poemas nas costas dos mortos
laminando a linguagem, obedecendo
ao vento que sopra do passado.

Cantinho, M. J., in 70 Poemas para Adorno, Funchal, 2015.

8 thoughts on “Balada de Czernowitz

  1. Nidja Andrade

    Teu blog é um hino á nossa paz de espírito, á paz que nos entra pelos olhos e nos enche de amor pelo próximo, á paz que ao ver tuas imagens, tuas frases, sentimos a deslizar de mansinho por todo o nosso ego…
    AbraçO

    Like

Leave a comment