Daniel Faria ou a (Im)possibilidade da arqueologia da palavra

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem(…).

Daniel Faria, homens que são como lugares mal Situados, p.12.

Daniel Faria faleceu em 1999, de uma forma trágica. Tinha 28 anos e ultimava a sua obra, Dos Líquidos, deixando amigos e editores a braços com a difícil tarefa de lhe publicarem a obra, praticamente terminada. Torna-se, deste modo, extremamente difícil ler e falar sobre Daniel Faria, mesmo para aqueles que não o conheceram pessoalmente, mas que o admiraram, tanto pela obra como pelo seu carácter e personalidade.
Apesar dessa dificuldade, persiste a ameaça de um silêncio (injusto) sobre a sua obra, num mundo dominado pela voragem da novidade literária, pela descoberta e proliferação de novos autores. Tanto mais que Daniel Faria não é propriamente um poeta de fácil digestão, integrando-se numa tradição da poesia metafísica, votada à meditação e ao silêncio claustral, no umbral em que se entrelaçam luz e sombra, poesia frequentemente enigmática e que exige uma interpretação atenta por parte do leitor.
Existe em Daniel Faria algo do silencioso anacoreta, aquele que procura a dissolução do mal-estar existencial nos grandes espaços, nos desertos físicos (e metafísicos) e na horizontalidade da própria escrita. É de uma busca incessante que se fala, quando lemos, por exemplo, no admirável poema “Homens que são como lugares mal Situados”: “Homens que trabalham sob a lâmpada/ Da morte/ Que escavam nessa luz para ver quem ilumina/ A fonte dos seus dias/. Ou, ainda, numa estrofe do mesmo poema: “Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento/ Livre. Que vêm devagar abrir/ Um lugar onde amanheça./ Homens que se sentam para ver uma manhã/ Que escavam um lugar/ Para a saída.”
Na busca ou percurso tensional para a fonte do dizer, para a claridade da linguagem e da sua origem existencial, conforma-se o campo semântico da sua poesia. Desde Homens que são como lugares mal situados e Explicação das Árvores e de Outros Animais (1998), que o percurso poético de Daniel Faria se caracteriza por uma coerência e consistência notáveis. Não estamos, evidentemente, a falar de conjuntos de poemas heterogéneos e dispersos, mas sim de livros, em que uma ideia lhes preside e nos guia como um fio condutor, um canto secreto, que nos surpreende e deslumbra permanentemente.
Conjugando domínio e apuro formal com uma sensibilidade poética invulgares, este jovem autor alcança na sua última obra, Dos Líquidos, uma maturidade que nos assombra. Não apenas pela riqueza estilística e imagética, pela sua originalidade, mas, sobretudo, pelo rigor da linguagem, esculpida na tensão que existe entre a intensidade das imagens e um despojamento essencial. Como no poema, em que o poeta diz: “Quero ganhar a forma/do degrau/ A forma da mão que se abre quando nada tem/ E quero a mão que se abre quando nada tem(…)” e termina assim: “O corpo inteiro, completo/ para morrer” .
De despojamento místico, o de quem possui a compreensão da sua fragilidade, pela precariedade de estar/ser vivo, alimenta-se toda a poesia de Daniel Faria, seguindo a ascese como a única forma de acesso ao conhecimento “aquático” da morte. Veja-se o magnífico poema, em que o poeta nos refere a eminência da morte: “Quando nadei profundamente na morte/ trouxe a mão ao cimo – era a superfície/ O arbusto húmido a respirar fora das águas/ A embarcação da infância/ A neblina escavada ao redor da ilha desigual. Na vegetação// Que rodeia o homem solitário. Entrei profundamente/ Trouxe a mão à tona da morte – o reflexo(…)” .
A embarcação da infância, imagem desolada de uma partida sem regresso, desliza assombradamente nas águas da morte, a caminho do “peixe que espera sobre todas as águas”, unidade na qual se redimem todas as viagens, desvios e derivas e se configura como uma imagem pairante, profundamente perturbadora, na qual se concentra uma dialéctica tão pungente quão inconciliável, de tom fortemente alegórico.
É, aliás, este tom alegórico a “pedra de toque” de toda a sua poética, a matriz geradora da musicalidade da sua poesia, já que o seu frágil e precário equilíbrio se auto-sustenta nessa dialéctica entre o que é dito e o que fica latente, num percurso de dolorosa perda, que habita o corpo do poema. A este propósito ocorre-me a expressão de Agamben, em que o autor fala da “fractura da linguagem”, em todo o seu carácter inesgotável. O poeta é o que avança “às cegas” na linguagem, procurando a chispa de fogo na noite, a centelha capaz de iluminar e devolver o sentido às coisas nomeadas. Quando Daniel Faria diz, em homens que são como lugares mal situados, “Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio/ Restauro-a/ Dou-lhe um som para que ela fale por dentro/ ilumino-a” , é ainda dessa restauração da plenitude do nome que se fala.
Em toda a leitura, o sopro do poema remete-nos para uma possível reabilitação, não apenas do ente e da criatura nomeada, mas da própria linguagem, no seu esplendor. Para que, mais do que palavra, ela se converta no “som iluminado” capaz de gerar o sentido, a magia do dizer. E, como ele próprio o reconhece, essa palavra “não se come como as palavras inteiras/ Mas devora-se a si mesma e restauro-a” . De outro modo dizendo, o destino da palavra conhece o movimento naturalmente autofágico da alegoria que, pelo excesso do dizer, pela dialéctica e laceração interna que lhe são ínsitas, se auto-devora, no momento em que é dita, pois todo o impulso alegórico radica na restauração, na (re)nomeação e iluminação do que é/já foi dito, em simultâneo.
Neste notável poema, Daniel Faria define o movimento essencial da sua poética, ideia que é reiterada ao longo de todo o livro. Ainda no mesmo poema se diz: “Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza/ Como um homem nadando para trás/ e sou uma energia para ela// E ilumino-a.” . Esse movimento, o de “nadar para trás”, num “tempo de tristeza”, em movimento energético (ou erótico) para a palavra/nome, lutando para a consertar “com todos os sentidos em silêncio” inscreve-se, com efeito, no impulso alegórico. Sem querer ser exaustiva, devo ainda lembrar as suas metáforas de eleição, para corroborar esse ponto de vista. Metáforas como a da imagem “desenhada como um fóssil” , evocando uma preexistência da palavra, bem como as da leitura e da decifração, actos que se encontram estreitamente ligados à escrita secreta e imagística (tão familiar, certamente conhecida pelo poeta, à teologia).
Evoco, ainda, a teológica ideia de uma “natureza triste”, emudecida, de que falam Hamman e Walter Benjamin, para referir o universo poético de Daniel Faria, o mundo em que as coisas se situam fora do “seu sítio”, o que é dizer o mesmo que “estar fora da linguagem”. A mesma ideia, a de uma estranheza do homem relativamente à sua natureza essencial (o homem nomeador, adâmico) é o núcleo deste livro, tal como o próprio título nos sugere. Os homens que são como lugares mal situados, vítimas modernas de uma alienação da experiência, que encontra o seu correlato na experiência da desintegração da linguagem, da sua perda.
Não devemos, então, admirar-nos, da sequência das obras de D.F.. O poeta encara a poesia como a possibilidade de descortinar/regressar à ilha (a Ítaca da linguagem, lugar do desejo e do reencontro simbólico), que se destaca na neblina do “mar da morte”, sendo a ilha o único lugar claramente visível e não submerso pela escuridão, pelo nevoeiro, o qual impede a viagem dos homens “sem pertença” e sem lugar.
Nesta imagem concentra-se toda a potência da metáfora filosófica (e bem platónica) da cegueira ou, para ser mais precisa, da (im)possibilidade da visão. Aquele que escreve é o que procura restituir a possibilidade do retorno, vislumbrando-a. Luta por isso, procura levar a cabo uma clarificação do mundo pelo poder da palavra. Toda a melancolia e mal-estar resultam dessa dialéctica entre o que se perdeu, pela contaminação da palavra/experiência, e o desejo do reencontro, a sua possibilidade.
Quanto à impossibilidade, ela deriva de uma opacidade da linguagem, impedindo a libertação da imagem poética, como diz Daniel Faria no poema “Mas Basta-me um Quadrado de Sossego”: “Tornei-me peso/ Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores/ Peso da ceguez nos meus olhos contaminados/ Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores” . O peso da palavra e da imagem contaminam o olhar, impedindo-lhe a visão, obrigando-a a uma inflexão. Esta recusa coincide também com a visão platónica, exigindo a dolorosa renúncia da realidade sensorial: “Dinamitei depois tudo o que em mim tinha a forma de aquário/ Um aquário sem nada dentro dele(…)” . A ideia de uma deflagração subjaz como a possibilidade de construir a escada, uma abertura para uma visão interior e mística, numa busca de unidade com o divino.
O poema “Uma Espécie de Anjo Ferido na Raíz”, em homens que são como lugares mal situados, constitui uma admirável reflexão acerca da escrita, tomada enquanto projecto de refundação do real e da linguagem. E mais do que um dizer, exterior ao sujeito, a escrita diz-se no poeta, faz-se carne, corporeiza-se, tornando-se interior ao sujeito poético. Eis aí a palavra que respira, “a palavra nova/ A pedra onde corre o sangue” , e ouso falar, aqui, da palavra nova e anunciadora, a que, pela vida que traz em si, se transforma em abertura, “Há dentro dela uma pedra nupcial”. Como pistas que se deixam num caminho percorrido às cegas, há sinais que se reenviam entre si, portas e aberturas comunicantes entre o corpo (na metáfora do pulso), a casa, e interior/ exterior: “Um pulso aberto, como qualquer palavra a meio;/ Fenda que não dói mais/ Do que um fruto cortado antes do tempo/ Do que uma ave em voo perdendo a sua sombra.// E posso escrever com ele a abertura/ A passagem para dentro/ Os umbrais da própria carne/ Pôr o coração no interior para soldar/ Uma pulseira humilde. Uma aliança/ Com o que respira.” .
Nas metáforas que D.F. utiliza, o que nos surpreende é a subversão do seu campo semântico, em que o poeta estabelece um jogo de constante reenvio das imagens poéticas que utiliza, abrindo novos rumos, como quando diz: “Assemelhei-me a um xilofone de silêncio/ A um estrondo muito forte que só se ouvia em silêncio./ Gritei: então canta!/Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar.” . O que se doba? A tristeza/linguagem muda ou o tempo da tristeza? Desta indecibilidade de sentidos nasce toda a tensão do poema, suscitando a leitura, reclamando a interpretação, truncando e abrindo múltiplos atalhos, convidando-nos à leitura errante e, por isso, inesgotável.
A “pulseira humilde”, entre o pulso que escreve e o real que pulsa, concentra, enquanto imagem poética, um intenso poder, no sentido em que se configura simbolicamente como o laço de (re)união entre o corpo que (se) exprime, pulsando/escrevendo, e “é sempre possível redigir com ele/ Pensá-lo como uma ferida que se cura” (idem), numa deriva pelas divisões da casa, surgindo ainda a casa como o lugar simbólico do repouso, descanso da palavra. Do que respira, do espaço onde é possível o respirar, ainda, onde a palavra dói como a ferida, onde o pulso sangra, escrevendo e enlaçando-se dolorosamente com o real, até ao lugar da casa – e que é também a “casa do ser”, convidando-nos à intertextualidade com os textos de Heidegger – onde se torna possível o descanso, a suspensão da dor, da ferida da palavra. Aí, nesse axis mundi onde se torna possível a fonte do claro “dizer”. Todas as metáforas desta poesia, numa polaridade intrínseca, marcadas pelo vaivém contínuo de um pólo ao outro, suscitam uma reflexão incessante, que não nos deixa indiferentes.
Quando lhe pediram, um dia, que traçasse um auto-retrato, Daniel Faria escreveu que era “um rosto que há-de vir”. O carácter simultâneamente óbvio e enigmático da sua afirmação faz-nos pensar que o poeta teria a plena consciência do valor e qualidade intrínseca da sua obra. Para os mais cépticos e os que ainda não o leram, esta afirmação corre o risco de pertencer algo pretensiosa. Mas quando nos deparamos com a poesia de Daniel Faria e nela mergulhamos, munidos unicamente de atenção e ouvido, então compreendemos como são desnecessários todos os juízos. Sobretudo no último ciclo de poemas, em Dos Líquidos, numa belíssima homenagem à poesia de Luiza Neto Jorge: “O tesouro é então a magnólia segredada entre nós dois/ É o canto que circula entre os lábios, a seiva/ Entre o nosso cérebro e o seu próprio coração./ O coração do poema é a magnólia ao vento(…)” .
A sublimidade da poesia de Daniel Faria encontra-se também nessa intimidade absoluta, partilhada pelo leitor. Como quando ele afirma, de uma forma que tanto se aproxima do primeiro poema de abertura de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, interpelando-nos: “Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página/E aproveito o facto de teres chegado agora/Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia./(…)Essa raíz para a palavra que ela lançou no poema/Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado/A flor que se abrir é já um pouco de ti. ” . Dessa magnólia, que transcende todo o poema, flor que se tece na escuridão orvalhada das palavras, nasce um espaço sagrado, de escuta, onde tudo se convoca e é possível o reencontro simbólico: “Se a guardares como um tesouro verás como brilha/Como acende a pulsação dos pássaros – o seu canto,/ Da ida e da vinda, aos teus ouvidos.”

Maria João Cantinho, publicado na revista on line “Agulha”

3 thoughts on “Daniel Faria ou a (Im)possibilidade da arqueologia da palavra

  1. PRA de Jorge Bernardo

    Se existe idiotas que não gostam de poesia, todos eles deviam ler este artigo uma dúzia de vezes, porque é fantástico e muito bem escrito.
    É importante para mim ser um poeta a escrever sobre outro poeta, de uma forma sensível e comovente agradeço a Maria João Cantinho esta muito boa homenagem a Daniel Faria.

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