
Fiéis ao desbaratar da luz
Armando Silva Carvalho, Anthero, Areia & Água, Editora Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.
É o primeiro poema deste livro que dá o título à obra e começa assim uma obra que nos deixa sem fôlego: “Como todos acabamos, acabaste./Mas não acabaste como quase todos acabamos./Sentaste-te num banco de jardim,/Separado pelo mar,/Separado de ti, separado de separações/Que te obrigassem a unir/Os ossos redimidos, os músculos mentais/Desse palácio de ideias, no dizer de Sérgio,/Que durante tanto tempo construíste//E disparaste dois tiros.// Na boca,/Exactamente,/Sem qualquer espécie de retórica.” E é sob o signo de Anthero que Armando Silva Carvalho se coloca, desde o início. Já num texto publicado pelo autor na Revista Colóquio-Letras, do início deste ano (Janeiro/Abril, nº 173), ele nos dava conta dessa sedução – confessada no poema que dá o título ao livro – que Anthero sempre exerceu sobre ele, configurando-se Anthero como o sujeito poético deste livro. Armando Silva Carvalho assume um risco claro nesta obra, não é do poeta que aqui trata, na sua forma mais fiel, mas antes de uma voz ampla que é já perpassada pela aragem da modernidade (e que Anthero claramente pressentiu), em toda a sua contradição, como desaparecimento de uma ordem de valores antiga e emergência de uma nova ordem. Ainda o soneto lampeja, mas já se ouve a “ondulada música” dos versos de Withman (p. 38), “(…)esse americano que declamava no fogo/O sermão do fogo: doado inteiro quando se doava,/Ao mundo, aos homens, e dormindo entre estrelas,/ Abraçado aos deuses.”
Não apenas a sombra de Walt Withman visita este livro, mas também Eça de Queiroz, Bulhão pato (amigos de Anthero), Cesário Verde, os autores russos (Tolstoi, Dostoievski) . Uma certa luz saturnina de Baudelaire e do seu spleen paira em certos poemas, também, já que Anthero conheceu essa Paris de Charcot, enquanto “jovem dandy” (p. 60). Em “Asas de Cetim” (p. 59), se diz assim: “Também eu, segundo disse o Queiroz/Me alimentei de França, vinha ela de comboio/E em livros”. E, como ser trágico que era, também Anthero sentiu na pele a doença do século, o tedium vitae, tão comum aos criadores e génios alegóricos da sua época. De um lado a esperança, a crença no ideal socialista (no seu tão amado Proudhon) e a persistência na busca incansável da transcendência e da justiça: “A ideia do bem, a justiça, a concreta forma da justiça,/Onde o universo explode em ondas de beleza”. Do outro, o ar irrespirável da doença, o desespero que haveria de matá-lo, como no último poema, “Epístola Apócrifa”: “Escrevo-lhe, meu caro, porque me sinto fraco/Francamente fraco,/E não posso aceitar esta fraqueza de alma/Sobreposta à do corpo.”
O resto sabemo-lo. Mas a redenção, essa, está nos belos versos de Armando Silva Carvalho: “Um longo sono cobre este país de palavras sem água./Ninguém navega nelas a não ser os poetas/Fiéis ao desbaratar da luz/ E eu sempre recusei esse nome à minha consciência./Insone, subindo noite acima,/Despido já do corpo, não soube que fazer da decifração da alma/As mais agrestes fracturas do desejo/Mais longe, mais céu, mais mar, misteriosos”.
Maria João Cantinho (recensão publicada na revista “LER” do mês de Dezembro.
Maria João Cantinho
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clc5ccm
Entre, a palavra e a imagem prefiro a palavra, é como a pedra e o espelho, a palavra é o meio mais íntimo, no entanto o pedreiro da palavra Lobo Antunes afirma que “quando a gente está a ouvir com os olhos as falas do enigma são perfeitas quando a gente está a ouvir com a voz é completamente… ninguém fala assim), aqui neste blogue a palavra e a imagem estão numa perfeita dialéctica harmoniosa. Aqui deixo os meus humildes e tímidos parabéns. Jorge Bernardo
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Maria João Cantinho
Obrigada, Jorge, só agora vejo as mensagens, sou um bocadinho retardada.
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